terça-feira, 4 de maio de 2010

jornal urtiga! n° 12 - maio 2010

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Colaboradores desta edição:

Emili Albuquerque
Jucimara Garbos
Rosana Cavalheiro
Neusa Soares
Stella Florence

Clarice Lispector e a pintura - urtiga n° 12

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Quais são os limites entre a pintura e a literatura? Em que momento as palavras deixam de ser palavras e passam a ser traços e cores? Como pintar um livro ou escrever um quadro? O pintor pinta o que não consegue descrever e o escritor escreve o que não consegue pintar. Medo, Explosão, Tentativa de Ser Alegre ou Caos da Metamorfose sem Sentido, Sobre Medo. Esses são os nomes de alguns dos quadros pintados por Clarice Lispector. Segundo Marcelo Bortoloti, os quadros de Clarice testemunham um período especialmente difícil para a autora: «Em 1975, ela fora demitida do Jornal do Brasil, no qual escrevia crônicas semanais, e estava preocupada com sua situação financeira. Embora ainda não soubesse do câncer que a mataria dois anos depois, sua saúde já estava debilitada. Aos 54 anos, escritora consagrada, ela se dizia cansada da literatura e declarava que pretendia parar de escrever, talvez para sempre. Ao longo desse ano, pintou freneticamente. São obras abstratas, algumas sombrias, outras muito coloridas, todas com nomes trágicos». Em dois de seus romances, Água Viva, de 1973, e o póstumo Um Sopro de Vida, as personagens centrais são artistas plásticas, e há títulos de quadros que foram usados pela autora nas obras que pintou depois.

Uma pincelada de cores e palavras - urtiga n° 12

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Para fazer a leitura de Água, Viva, de Clarice Lispector, temos que estar preparados para mergulharmos em uma obra de arte, estando conscientes de que passaremos de leitores a pintores. Devemos estar com todo o material à mão para, juntos de Clarice, finalizarmos essa pintura/escritura.
Clarice, nessa obra, tenta escrever tudo o que não consegue pintar. É uma forma de se manter viva: «Eu acho que, quando não escrevo, estou morta». O nome Água Viva é um desejo de unir a arte à vida. E ela nos deixa inquietos, pois consegue entrar em nosso íntimo, deixando tortuosas dúvidas sobre o presente, o «instante-já». Logo no início do livro diz: «O presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já». Em alguns momentos do texto, a narradora tenta fazer pintura com as palavras, como se o ato de escrever exigisse um pincel e a mistura de cores. A palavra exata é uma cor apropriada para a tela: «Não pinto idéias, pinto o mais inatingível "para sempre". Ou "para nunca", é o mesmo. Antes de mais nada, pinto pintura. E antes de mais nada te escrevo dura escritura».
Um dos quadros que Clarice pintou ganhou o nome de Gruta. Sobre ele, a narradora comenta: «As grutas são o meu inferno». Há uma angústia na pintura, uma vontade de dizer e não ter palavras, «seu doce horror». Ela sente medo de saber pintar o horror, mas é um horror doce,por isso pinta.
Água Viva nos permite ser ao nos fornecer as lacunas de uma narradora fragmentada. Assim, podemos usar o imaginário, conquistando uma autonomia que nos convida a finalizar a obra de arte: «O que te escrevo é um isto. Não vai parar: continua».
Clarice Lispector escrevia desde pequena e chegou a confessar: «Quando tinha nove anos, eu vi um espetáculo e, inspirada, em duas folhas de caderno, fiz uma peça em três atos, não sei como. Escondi atrás da estante porque tinha vergonha de escrever».
Ela tinha um método de escrita, anotava todas as idéias a qualquer hora, em qualquer pedaço de papel, afinal, as idéias fogem, não é? Sempre com seu estilo intimista buscando entender o que significa «estar no mundo».
Numa crônica publicada em 1968 no Jornal do Brasil, ela comenta: «(...) fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdôo». Neste fragmento do livro de crônicas A Descoberta do Mundo, Clarice Lispector nos mostra todo o seu drama particular. Ela veio de uma família judaica, recebendo o nome de Haia, que significa Vida. Terceira filha de Pinkouss e Manica Lispector, natural da Ucrânia, Clarice veio para o Brasil ainda recém-nascida e tornou-se uma das escritoras mais importantes da literatura modernista, junto com Guimarães Rosa, nos anos 60. Seu primeiro romance foi Perto do Coração Selvagem, com o qual ganhou o Prêmio Graça Aranha, no ano de 1944. Clarice Lispector morre no Rio de Janeiro em 9 de dezembro de 1977, um dia antes de completar 57 anos. Carlos Drummond de Andrade, seu amigo, escreveu: «Clarice veio de um mistério, partiu para outro. Ficamos sem saber a essência do mistério ou o mistério não era essencial, era Clarice viajando nele».

Jucimara Garbos, graduada em Letras pela FAFIUV; cursando especialização em Língua Portuguesa e Literaturas (FAFIUV)

Leite Derramado: O clássico torna-se contemporâneo - urtiga n° 12

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Leite Derramado, o mais recente romance de Chico Buarque, lançado em 2009, pela Companhia das Letras, conta a história de Eulálio da Assumpção, homem de estirpe que, ao completar cem anos, se vê numa simples cama de hospital, dependente de todos à sua volta. Entre lapsos de memórias, Eulálio remonta a sua história, de glamour e decadência, dialogando, aparentemente, com inúmeros interlocutores.
O livro tem como narrador o próprio Eulálio, isto é, um narrador-personagem. Este fato nos remete ao célebre Machado de Assis, que utilizou esse procedimento no imortal Memórias Póstumas de Brás Cubas, que apresenta um defunto-autor. Mas não é somente por isso que as duas obras podem ser aproximadas. Machado rompe com narrativa tradicional, construindo um enredo alinear, ou seja, que não segue uma ordem lógica, tampouco cronológica. Assim como Machado, Chico produz uma narrativa caótica, em que o narrador não é mais o senhor de si. Eulálio, ao longo de suas memórias, se torna repetitivo, o que justifica a frase do narrador-personagem quando este faz uma advertência ao leitor, dizendo que “a memória é um grande pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas. Não pode alguém de fora se intrometer, como a empregada, que remove a papelada para espanar o escritório. Ou como minha filha que pretende dispor minha memória, na ordem dela, cronológica, alfabética, ou por assunto”.
Nesta passagem do livro, fica claro que a narrativa é diferente das histórias tradicionais, por operar constantes quebras em seu enredo. Ao longo de suas memórias, Eulálio narra com orgulho a origem de sua família, mostrando que provém de berço de ouro. Ao mencionar a estreita relação de sua família com personagens marcantes da nossa história, remonta também um panorama histórico e cultural do nosso país.
São corriqueiras as reminiscências da infância e principalmente da juventude, época em que Eulálio conhece seu grande amor, Matilde, moça que embora tendo a cor desta terra, é do meio social do jovem. A moça o cativa de forma incontestável.
A presença de Matilde é constante nos relatos de Eulálio. Ora divinizada, ora condenada por seus atos, sua figura é marcante e prevalece, de maneira que, em alguns momentos, parece mais ser um tormento que lembrança. Mas é evidente que, apesar de abandoná-lo, Matilde permanece sendo seu grande amor.
Outro fato relevante é a figura do pai, que aparece sempre mencionado como homem de posses, de contatos influentes, ligado à política, e que tem uma vida social bastante agitada, bem como várias amantes. Este último fato, a princípio, torna-se o motivo mais provável de sua morte trágica. A cena do pai estendido num tapete, morto, quando Eulálio ainda era jovem, por vezes se torna um fardo doloroso, um suplício.
É típico Eulálio intercalar ou interromper suas memórias para dialogar com algum interlocutor, pois ao mesmo tempo em que conta seu passado, narra seu presente. Suas lembranças ora se repetem, ora se confundem, formando um grande labirinto. Nem mesmo ele consegue explicá-las com discernimento.
Os interlocutores, a filha e os funcionários do hospital, aos quais Eulálio se refere ao longo do texto, e que por vezes trava diálogos, parecem não ouvi-lo. O fato é que temos a impressão de que esses diálogos não passam de desvarios do narrador. Dessa maneira, a narrativa de Chico Buarque se insere numa linhagem da literatura contemporânea que valoriza um narrador paranóico - como o narrador de Bêbados e Sonâmbulos, de Bernardo Carvalho -, um narrador desterritorializado, para usar uma expressão de Gilles Deleuze.
Observe: “Nem sei por que você me alivia a dor. Todo dia a senhora levanta a persiana com bruteza e joga o sol no meu rosto”. O narrador se refere à filha. O intrigante é que a filha não reage ao comentário e continua a agir normalmente.
Mais adiante: “Quando sair daqui, vamos começar vida nova numa cidade antiga, onde todos se cumprimentem e ninguém nos conheça. Vou lhe ensinar a falar direito, a usar os diferentes talheres e copos de vinho, escolherei a dedo seu guarda-roupa e livros sérios para você ler. Sinto que você leva jeito porque é aplicada, tem meigas mãos, não faz cara ruim nem quando me lava, em suma, parece uma moça digna apesar da origem humilde».
Desta vez, o discurso é proferido a uma enfermeira.
Em outra passagem, o narrador confidencia à filha:
“Não vou mentir, tive outras mulheres depois dela, levei mulheres para cama. E quando a babá Balbina ouvia nosso bulício, saía com você para a praia, mesmo à noitinha, às vezes debaixo de chuva.” Ou ainda: “Tragam-me por obséquio a minha goiabada”.
Percebemos que esses diálogos nada mais são do que meros comentários pensados e não ditos. Os interlocutores, em nenhum momento, reagem a esse diálogo, o que torna válida a hipótese de que o narrador dialoga consigo mesmo, e mais, que as lembranças não passam de devaneios de Eulálio, devido à sua saúde debilitada.
Realmente, as semelhanças com Brás Cubas existem. Vejo a obra de Machado sendo reinventada por Chico. A literatura nada mais é do que a arte de reinventar a realidade e a própria tradição literária. Também não me assusto com o o fato de um cantor como Chico Buarque produzir um livro como esse. Leite Derramado marca um ponto em que o velho pode se tornar contemporâneo, mostrando-nos a riqueza de nossa literatura.


Rosana Cavalheiro, cursando especialização em Língua Portuguesa e respectivas Literaturas, na FAFIUV.

Gótico: a busca pelo Grotesco - urtiga! n° 12

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O vício. O obscuro. O pagão. O grotesco. A morte. O paroxismo plangente diante do amor impossível: seja a virgem imaculada ou a devassa insaciável; o príncipe num cavalo branco ou o Don Juan tuberculoso que, ébrio, desvirtua as moçoilas da corte.
Todos esses temas sôfregos que levariam qualquer mortal ao arrasto do sofrimento exercem, ao invés de uma repulsa, uma atração curiosa, uma sedução compulsiva que é incessantemente retratada em várias obras artísticas – de esculturas medievais até os contos marginais publicados em blogs na internet.
Mas por que essa exaltação torturante continua a ser representada? Por que, apesar da incômoda sensação diante desses tabus sociais, artistas insistem em tocar nas feridas da psique? E mais que isso, cometer o despautério de chamar o grotesco de Arte?
A Arte pode ser sintetizada, em sua essência, na busca pelo Belo. A busca pela beleza e a melhor forma de ser exaltada fazem parte do universo de preocupações humanas. A busca pelo Belo é eterna na Arte. Mas como pode ser definido o “Belo”? O que é essa exaltação?
Temos a associação Socrática do Belo ao que é útil e confortável. Contrapondo-se a esse sentido prático Platão defende a busca de um Belo que não tenha como finalidade uma utilidade, mas que corresponda a um ideal de beleza que se encontre nas coisas, significando que os objetos somente serão Belos na medida em que se enquadrem do ideal de beleza, que é perfeito, imutável, atemporal e além da dimensão material. Aristóteles, contrapondo-se a Platão e a toda a sua questão utópica, procura o belo na mimese da realidade, tanto que afirma: “A tendência para a imitação é instintiva no homem, desde a infância”.
Tão diversa é a conceituação do Belo quanto às expressões estéticas traduzidas em milênios de produções artísticas. Tão variável é o pensamento humano quanto as suas eras, suas regiões, crenças, enfim, suas culturas.
A expressão é por si só a Arte. E a expressão do lado negro do coração humano não poderia deixar de existir, visto que todos os corações pulsam com um lado maligno, com uma agonia que não pode ser sufocada por padrões de harmonia, claridade e felicidade por vezes inatingíveis. O mito da família perfeita, da vida e do emprego harmonioso, da eterna sensação do mar de rosas; tudo é substituído pelo vazio interno, pelo destino irrefutável da morte – e a morte é o tabu, é a putrefação, é o fim da consciência a qual todos nós estamos fadados.
Conclui-se, assim, que o senso estético Obscuro existe porque o tabu é o próprio medo transvertido de preconceito, e o medo é característica de todo e qualquer ser vivo desenvolvido. Os animais têm medo, ou pelo menos demonstrações de medo como tentativa de fuga e/ou defesa. O medo faz parte do instinto. E o medo vem justamente do risco iminente da morte. E a morte suscita uma série de pensamentos, sentimentos, tudo o que lembrar “bizarro, macabro, sujo, pecaminoso”. Dessa forma, o medo da morte exerce uma sedução hipnótica quando está na questão central de uma obra artística. Justamente porque desperta os instintos ainda animalescos que a humanidade sempre fez questão de ocultar. O Obscuro, no sentido de um Belo oculto, é misterioso e grotesco como a própria morte.
Aliado ao poder instintivo do medo, temos a curiosidade e, mais além, temos a criatividade. O ser humano utiliza seu poder de raciocínio e desperta o seu lado lúdico para transformar uma obra da exaltação ao grotesco em um Belo de proporções únicas.
Fatos sociais – como guerras, disseminações de doenças mortais, descrenças políticas, pessoais e filosóficas – também serviram como gênese para que o instinto do horror fosse despertado e exteriorizado em forma de arte.
A utopia de um mundo paradisíaco e sem dores é substituída pela agonia aterradora de uma situação de incertezas e da iminência de uma catástrofe.
Assim, essas obras adquirem um tom confessional, com um lirismo mórbido cuja temática gira em torno dessas coisas resultantes de martírios sofridos em épocas conturbadas por ameaças e pesadelos reais.
Em muitas obras, em várias épocas, encontramos esse sentimento obscuro – tanto no sentido do próprio Oculto, pois tudo o que é desconhecido causa estranhamento, incômodo, repulsa. Porém, a tendência estética da busca pela morte e a sua veneração, na cronologia literária, dá-se mais especificamente com o desenvolvimento do movimento artístico Romântico (apesar de existirem variadas obras da era Barroca e até mesmo anteriores, que preencheriam todos os requisitos da estética Gótica). Bottin observa que «moralidade e monstruosidade eram duas das marcas do julgamento ateu do século XVIII».
Segundo Bottin, «O Cenário natural, por exemplo, foi sendo percebido de maneira diferente. Montanhas, uma vez consideradas feias como cicatrizes, deformidades desfigurando as proporções de um mundo que idealisticamente deveria ser uniforme, plano e simétrico, começou a serem vistas com olhos prazerosos diante de sua irregularidade, diversidade e escalas. [...] Reflexão, prostração, horror e regozijo eram as emoções que, acreditava-se, expandiam ou elevavam a alma e a imaginação com um sentido de poder e infinidade. As montanhas eram os objetos centrais da sublimação natural».
O Romantismo volta-se, dessa forma, para o lado obscuro do próprio ser e de toda a natureza, nessa ânsia de descobrir e redescobrir o próprio lado negro da vida.
Mais além, Snodgrass relembra que «com amostras da literatura pitoresca, conhecimento de aventuras episódicas, e baladas sobrenaturais, a escola gótica retornou para a selva e a arquitetura do passado distante para os sons noturnos e as sombras nas quais ancorou contos de terror».
Etimologicamente, trata-se Gótico originalmente como algo que era próprio da tribo bárbara germânica dos Godos, (séc. IV). Conhecidos pela batalha chefiada por Berik, na qual eles realizaram uma cruzada pagã à Roma. Na situação, três navios foram utilizados nos quais os guerreiros eram descendentes dos legendários clãs dos Ostrogodos, Visgóticos e Gepid. O império de Roma temia esses guerreiros, e os monges os identificavam como sendo descendentes de Gog, um chefe bárbaro mencionado na Bíblia. O rei gótico Theodoric fundou seu reino na Itália no ano 448 D. C. Apesar da aristrocracia da Itália e Espanha clamarem por sua descendência gótica, a palavra Gótico tornou-se logo sinônimo de paganismo, terror e escuridão. Como metáfora, o termo Gótico foi usado pela primeira vez no início da Renascença, para designar pejorativamente a tendência arquitetônica, criada pela Igreja Católica, da baixa Idade Média e, por conseqüência, toda produção artística deste período. Assim, a arquitetura foi classificada como gótica, referindo-se ao seu estilo "bárbaro", se comparado às tendências românicas da época: imagens pintadas sem noções aprofundadas de perspectiva e, subjetivamente, corroídas por simbologias fantásticas de santos e mártires. No século XVIII, como reação ao Iluminismo, surge o Romantismo que idealiza uma Idade Média, que na verdade nunca existiu. Durante o Romantismo, a arte Gótica foi valorizada e tornou-se sinônimo de, acima de tudo, inspiração. Podemos dizer que o Romantismo foi, por essa razão, uma Renascença do Gótico.
Nesse período o termo Gótico passa a designar também uma parcela da literatura Romântica. Como a Idade Média também é conhecida como "Idade das Trevas", o termo é aplicado como sinônimo de medieval, sombrio, macabro e por vezes, sobrenatural. As expressões Gothic Novel e Gothic Literature são utilizadas para designar este sub-gênero Romântico, que trazia enredos sobrenaturais ambientados em cenários sombrios como castelos em ruínas e cemitérios. Assim, o termo Gothicism, de cunho inglês, é associado ao conjunto de obras da literatura gótica. Em várias artes, o grotesco também inspirou a criação de obras sombrias e inquietantes: Beethoven, com sua Sonata ao Luar, suscita a melancolia íntima – e antes dele Bach, com sua Tocata e Fuga em ré menor para órgão desperta o macabro, inspirando diversas gerações de Fantasmas da Ópera. Isso sem mencionar Saint-Saëns, com sua Dança Macabra, inspirada numa figura medieval na qual figuras cadavéricas dançam alegremente. Assim vemos também na arquitetura e na atual fotografia com técnicas de Photoshop a sedução diante de um mundo misterioso e desconhecido que desperta uma inquietação e uma vontade árdua de produzir mais obras exteriorizando sua inquietação, seu tabu, sua vontade pela vida desvirtuada e pelo fim impiedoso desta.
Escritores diversos fizeram sua própria obra escrita com o sangue vertente de suas veias criativas – sejam no movimento Barroco, no Romantismo inspirados por Byron, sejam no simbolismo, sejam nos sites e blogs dedicados à sub-cultura Gótica – o terror, o assustador, o grotesco continuam a amedrontar a mente humana.
A Estética obscura nos acompanhará até quando a morte, a guerra, a angústia e a imaginação fizerem parte de nossas vidas.

FIM

Emili Suani Machado Marcondes de Albuquerque, graduada em Letras pela FAFIUV, cursando especialização em Língua Portuguesa e Literaturas pela FAFIUV.

ENTREVISTA: Stella Florence - urtiga! n° 12

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Durante dez anos, Stella Florence trabalhou como secretária executiva. Até que numa tarde chuvosa, olhou ao seu redor no escritório em que trabalhava e se perguntou: "O que é que eu estou fazendo aqui?" O resultado? Stella levantou de sua mesa e foi embora para nunca mais voltar. Pouco depois desse grito de alforria, ela resolveu se dedicar à literatura. Hoje essa escritora paulistana é autora de vários livros, entre eles Por que os homens não cortam as unhas dos pés, Hoje acordei gorda e 32, 32 anos, 32 homens, 32 tatuagens.

O que te motivou deixar a profissão de secretária para se dedicar exclusivamente à de escritora?
Talvez seja possível resumir em uma palavra: vocação. Foi um surto da alma: aos 29 anos, eu me levantei, peguei minha bolsa, e fui embora do escritório como um zumbi em transe. Dias depois a ideia de voltar a escrever (coisa que eu fazia não profissionalmente na infância e adolescência) me pareceu óbvia, irrefreável. Por mais absurda que parecesse minha decisão naquele momento, eu nunca tive qualquer dúvida de que a mudança de profissão daria certo. Eu estava envolvida por uma espécie de lucidez espiritual – que poderia facilmente ser con-fundida com loucura, é claro. (risos).

Gostei muito dos contos de Hoje acordei gorda, porém, um me deixou surpresa no início e no fim feliz: «Eva era gorda mesmo». Parece-me que, nesse conto, a mulher é vista de forma estereotipada e no final dá uma alegria, um consolo por, finalmente, alguém afirmar que o natural é ser gordo e os magros é que são os anormais. Poderia comentá-lo?

A ideia desse conto-crônica é brincar com a possibilidade de uma origem gorda para todos nós, já que a queda do paraíso tem similaridades com uma quebra de dieta. É apenas uma brincadeira sobre as teorias esdrúxulas que tecemos em torno das mesas de bar, quando o álcool começa a afetar nosso raciocínio.

E quanto a um assunto bastante polêmico, o aborto, você é contra ou a favor? Quando lemos o conto «A vítima», ficamos com a impressão de que a narradora redime a protagonista Gerda, que praticou um aborto.
É, sou a favor da legalização do aborto, não do aborto em si. Não conheço nenhuma mulher que acorde um dia e pense: “Puxa, eu nunca fiz um aborto na vida, preciso ter essa experiência!”. Portanto, não faz sentido ser a favor de algo que só causa dor à mulher. No entanto, é preciso que haja a legalização para que quem escolher se submeter a ele o faça com condições básicas de saúde. No conto que você cita, um dos meus preferidos, Gerda está morta e se vê amparada por um espírito que crê ser seu anjo da guarda. Ao insistir sobre sua identidade, o espírito que a acompanhava com imenso carinho diz sem nenhuma mágoa: “Eu sou o filho que você optou por não ter”. É uma visão minha: acredito que o amor e a compreensão dos limites e das carências do outro sempre irão vencer a parada.

Alguns críticos como Regina Dalcastagné e Tânia Ramos a consideram uma escritora de auto-ajuda, propensa à prática da literatura conhecida como ¨chick lit¨. O que pensa disso?
Sim, eu sou tida como uma representante brasileira da chamada ¨chick lit¨ (literatura de mulherzinha). Não me preocupam os rótulos, eles são necessários para que você seja identificada num primeiro momento. Carrego os rótulos de escritora de humor, de auto-ajuda, de literatura feminina, de chick lit, de cronista ácida, etc. Como diz uma de minhas tatuagens: “sou várias e todas... verdadeiras”.

Na época em que seu livro de contos Hoje acordei gorda foi publicado, muitas pessoas pensavam que o livro fora escrito por Mário Prata. Você encarou o fato com bom humor?
Eu AMEI! Foi o melhor presente que uma escritora iniciante, como eu era na época, poderia receber. Imagine alguém que você admira e respeita muitíssimo fingir que escreveu seu livro e ainda dizer “este é meu melhor livro”. Eu babei de orgulho! Tenho convicção que, no Hoje Acordei Gorda, o Mario Prata, genial como sempre, criou um dos melhores prefácios da literatura.

Quais seus livros de cabeceira e qual está lendo no momento? E seus autores preferidos, poderia comentar sobre eles?
Para não estender demais a resposta, vou centralizar em dois dos meus preferidos: sou apaixonada pelo Gabriel García Márquez e pelo Tennessee Williams. Acho “Um bonde chamado desejo” (de T.W.) uma peça brilhante que consegue, através de duas personagens (Blanche e Stella), abordar quase todos os aspectos do feminino. Já Gabo (leio tanto Gabriel García Marquez que me sinto íntima do escritor colombiano a ponto de chamá-lo pelo apelido) é imbatível na maneira como aborda o amor e o sexo. Ninguém fala de sexo como Gabo (isso para não falar no aspecto jornalístico e mágico de sua obra espetacular). Quanto a minha cabeceira, o único livro que sempre está lá é o Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec.

Guimarães Rosa, em suas andanças e viagens como cônsul, embaixador do Brasil, anotava em cadernos cenas, conversas, paisagens, como pretexto na criação de seus personagens. E para você, de onde vem a inspiração?
Estou o tempo todo (mesmo que não queira) absorvendo, elaborando e editando tudo o que acontece fora e dentro de mim. Mas eu não faço anotações: se não desenvolvo o texto imediatamente e a ideia desaparece é porque não era uma boa. A ideia boa sempre volta.

Entrevista concedida à Neusa Soares, professora da Rede Pública Estadual. Pesquisadora do PDE (Plano de Desenvolvimento Educacional), sob orientação do curso de Letras da FAFIUV.

terça-feira, 6 de abril de 2010

jornal urtiga! n°11: Abril 2009

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Colaboradores desta edição:

Ângela Semczeszm
Caio R. B. Moreira
Isaac Newton
Nicolas Behr
Rovane Gil