terça-feira, 4 de maio de 2010

Leite Derramado: O clássico torna-se contemporâneo - urtiga n° 12

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Leite Derramado, o mais recente romance de Chico Buarque, lançado em 2009, pela Companhia das Letras, conta a história de Eulálio da Assumpção, homem de estirpe que, ao completar cem anos, se vê numa simples cama de hospital, dependente de todos à sua volta. Entre lapsos de memórias, Eulálio remonta a sua história, de glamour e decadência, dialogando, aparentemente, com inúmeros interlocutores.
O livro tem como narrador o próprio Eulálio, isto é, um narrador-personagem. Este fato nos remete ao célebre Machado de Assis, que utilizou esse procedimento no imortal Memórias Póstumas de Brás Cubas, que apresenta um defunto-autor. Mas não é somente por isso que as duas obras podem ser aproximadas. Machado rompe com narrativa tradicional, construindo um enredo alinear, ou seja, que não segue uma ordem lógica, tampouco cronológica. Assim como Machado, Chico produz uma narrativa caótica, em que o narrador não é mais o senhor de si. Eulálio, ao longo de suas memórias, se torna repetitivo, o que justifica a frase do narrador-personagem quando este faz uma advertência ao leitor, dizendo que “a memória é um grande pandemônio, mas está tudo lá dentro, depois de fuçar um pouco o dono é capaz de encontrar todas as coisas. Não pode alguém de fora se intrometer, como a empregada, que remove a papelada para espanar o escritório. Ou como minha filha que pretende dispor minha memória, na ordem dela, cronológica, alfabética, ou por assunto”.
Nesta passagem do livro, fica claro que a narrativa é diferente das histórias tradicionais, por operar constantes quebras em seu enredo. Ao longo de suas memórias, Eulálio narra com orgulho a origem de sua família, mostrando que provém de berço de ouro. Ao mencionar a estreita relação de sua família com personagens marcantes da nossa história, remonta também um panorama histórico e cultural do nosso país.
São corriqueiras as reminiscências da infância e principalmente da juventude, época em que Eulálio conhece seu grande amor, Matilde, moça que embora tendo a cor desta terra, é do meio social do jovem. A moça o cativa de forma incontestável.
A presença de Matilde é constante nos relatos de Eulálio. Ora divinizada, ora condenada por seus atos, sua figura é marcante e prevalece, de maneira que, em alguns momentos, parece mais ser um tormento que lembrança. Mas é evidente que, apesar de abandoná-lo, Matilde permanece sendo seu grande amor.
Outro fato relevante é a figura do pai, que aparece sempre mencionado como homem de posses, de contatos influentes, ligado à política, e que tem uma vida social bastante agitada, bem como várias amantes. Este último fato, a princípio, torna-se o motivo mais provável de sua morte trágica. A cena do pai estendido num tapete, morto, quando Eulálio ainda era jovem, por vezes se torna um fardo doloroso, um suplício.
É típico Eulálio intercalar ou interromper suas memórias para dialogar com algum interlocutor, pois ao mesmo tempo em que conta seu passado, narra seu presente. Suas lembranças ora se repetem, ora se confundem, formando um grande labirinto. Nem mesmo ele consegue explicá-las com discernimento.
Os interlocutores, a filha e os funcionários do hospital, aos quais Eulálio se refere ao longo do texto, e que por vezes trava diálogos, parecem não ouvi-lo. O fato é que temos a impressão de que esses diálogos não passam de desvarios do narrador. Dessa maneira, a narrativa de Chico Buarque se insere numa linhagem da literatura contemporânea que valoriza um narrador paranóico - como o narrador de Bêbados e Sonâmbulos, de Bernardo Carvalho -, um narrador desterritorializado, para usar uma expressão de Gilles Deleuze.
Observe: “Nem sei por que você me alivia a dor. Todo dia a senhora levanta a persiana com bruteza e joga o sol no meu rosto”. O narrador se refere à filha. O intrigante é que a filha não reage ao comentário e continua a agir normalmente.
Mais adiante: “Quando sair daqui, vamos começar vida nova numa cidade antiga, onde todos se cumprimentem e ninguém nos conheça. Vou lhe ensinar a falar direito, a usar os diferentes talheres e copos de vinho, escolherei a dedo seu guarda-roupa e livros sérios para você ler. Sinto que você leva jeito porque é aplicada, tem meigas mãos, não faz cara ruim nem quando me lava, em suma, parece uma moça digna apesar da origem humilde».
Desta vez, o discurso é proferido a uma enfermeira.
Em outra passagem, o narrador confidencia à filha:
“Não vou mentir, tive outras mulheres depois dela, levei mulheres para cama. E quando a babá Balbina ouvia nosso bulício, saía com você para a praia, mesmo à noitinha, às vezes debaixo de chuva.” Ou ainda: “Tragam-me por obséquio a minha goiabada”.
Percebemos que esses diálogos nada mais são do que meros comentários pensados e não ditos. Os interlocutores, em nenhum momento, reagem a esse diálogo, o que torna válida a hipótese de que o narrador dialoga consigo mesmo, e mais, que as lembranças não passam de devaneios de Eulálio, devido à sua saúde debilitada.
Realmente, as semelhanças com Brás Cubas existem. Vejo a obra de Machado sendo reinventada por Chico. A literatura nada mais é do que a arte de reinventar a realidade e a própria tradição literária. Também não me assusto com o o fato de um cantor como Chico Buarque produzir um livro como esse. Leite Derramado marca um ponto em que o velho pode se tornar contemporâneo, mostrando-nos a riqueza de nossa literatura.


Rosana Cavalheiro, cursando especialização em Língua Portuguesa e respectivas Literaturas, na FAFIUV.

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