terça-feira, 4 de maio de 2010

Gótico: a busca pelo Grotesco - urtiga! n° 12

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O vício. O obscuro. O pagão. O grotesco. A morte. O paroxismo plangente diante do amor impossível: seja a virgem imaculada ou a devassa insaciável; o príncipe num cavalo branco ou o Don Juan tuberculoso que, ébrio, desvirtua as moçoilas da corte.
Todos esses temas sôfregos que levariam qualquer mortal ao arrasto do sofrimento exercem, ao invés de uma repulsa, uma atração curiosa, uma sedução compulsiva que é incessantemente retratada em várias obras artísticas – de esculturas medievais até os contos marginais publicados em blogs na internet.
Mas por que essa exaltação torturante continua a ser representada? Por que, apesar da incômoda sensação diante desses tabus sociais, artistas insistem em tocar nas feridas da psique? E mais que isso, cometer o despautério de chamar o grotesco de Arte?
A Arte pode ser sintetizada, em sua essência, na busca pelo Belo. A busca pela beleza e a melhor forma de ser exaltada fazem parte do universo de preocupações humanas. A busca pelo Belo é eterna na Arte. Mas como pode ser definido o “Belo”? O que é essa exaltação?
Temos a associação Socrática do Belo ao que é útil e confortável. Contrapondo-se a esse sentido prático Platão defende a busca de um Belo que não tenha como finalidade uma utilidade, mas que corresponda a um ideal de beleza que se encontre nas coisas, significando que os objetos somente serão Belos na medida em que se enquadrem do ideal de beleza, que é perfeito, imutável, atemporal e além da dimensão material. Aristóteles, contrapondo-se a Platão e a toda a sua questão utópica, procura o belo na mimese da realidade, tanto que afirma: “A tendência para a imitação é instintiva no homem, desde a infância”.
Tão diversa é a conceituação do Belo quanto às expressões estéticas traduzidas em milênios de produções artísticas. Tão variável é o pensamento humano quanto as suas eras, suas regiões, crenças, enfim, suas culturas.
A expressão é por si só a Arte. E a expressão do lado negro do coração humano não poderia deixar de existir, visto que todos os corações pulsam com um lado maligno, com uma agonia que não pode ser sufocada por padrões de harmonia, claridade e felicidade por vezes inatingíveis. O mito da família perfeita, da vida e do emprego harmonioso, da eterna sensação do mar de rosas; tudo é substituído pelo vazio interno, pelo destino irrefutável da morte – e a morte é o tabu, é a putrefação, é o fim da consciência a qual todos nós estamos fadados.
Conclui-se, assim, que o senso estético Obscuro existe porque o tabu é o próprio medo transvertido de preconceito, e o medo é característica de todo e qualquer ser vivo desenvolvido. Os animais têm medo, ou pelo menos demonstrações de medo como tentativa de fuga e/ou defesa. O medo faz parte do instinto. E o medo vem justamente do risco iminente da morte. E a morte suscita uma série de pensamentos, sentimentos, tudo o que lembrar “bizarro, macabro, sujo, pecaminoso”. Dessa forma, o medo da morte exerce uma sedução hipnótica quando está na questão central de uma obra artística. Justamente porque desperta os instintos ainda animalescos que a humanidade sempre fez questão de ocultar. O Obscuro, no sentido de um Belo oculto, é misterioso e grotesco como a própria morte.
Aliado ao poder instintivo do medo, temos a curiosidade e, mais além, temos a criatividade. O ser humano utiliza seu poder de raciocínio e desperta o seu lado lúdico para transformar uma obra da exaltação ao grotesco em um Belo de proporções únicas.
Fatos sociais – como guerras, disseminações de doenças mortais, descrenças políticas, pessoais e filosóficas – também serviram como gênese para que o instinto do horror fosse despertado e exteriorizado em forma de arte.
A utopia de um mundo paradisíaco e sem dores é substituída pela agonia aterradora de uma situação de incertezas e da iminência de uma catástrofe.
Assim, essas obras adquirem um tom confessional, com um lirismo mórbido cuja temática gira em torno dessas coisas resultantes de martírios sofridos em épocas conturbadas por ameaças e pesadelos reais.
Em muitas obras, em várias épocas, encontramos esse sentimento obscuro – tanto no sentido do próprio Oculto, pois tudo o que é desconhecido causa estranhamento, incômodo, repulsa. Porém, a tendência estética da busca pela morte e a sua veneração, na cronologia literária, dá-se mais especificamente com o desenvolvimento do movimento artístico Romântico (apesar de existirem variadas obras da era Barroca e até mesmo anteriores, que preencheriam todos os requisitos da estética Gótica). Bottin observa que «moralidade e monstruosidade eram duas das marcas do julgamento ateu do século XVIII».
Segundo Bottin, «O Cenário natural, por exemplo, foi sendo percebido de maneira diferente. Montanhas, uma vez consideradas feias como cicatrizes, deformidades desfigurando as proporções de um mundo que idealisticamente deveria ser uniforme, plano e simétrico, começou a serem vistas com olhos prazerosos diante de sua irregularidade, diversidade e escalas. [...] Reflexão, prostração, horror e regozijo eram as emoções que, acreditava-se, expandiam ou elevavam a alma e a imaginação com um sentido de poder e infinidade. As montanhas eram os objetos centrais da sublimação natural».
O Romantismo volta-se, dessa forma, para o lado obscuro do próprio ser e de toda a natureza, nessa ânsia de descobrir e redescobrir o próprio lado negro da vida.
Mais além, Snodgrass relembra que «com amostras da literatura pitoresca, conhecimento de aventuras episódicas, e baladas sobrenaturais, a escola gótica retornou para a selva e a arquitetura do passado distante para os sons noturnos e as sombras nas quais ancorou contos de terror».
Etimologicamente, trata-se Gótico originalmente como algo que era próprio da tribo bárbara germânica dos Godos, (séc. IV). Conhecidos pela batalha chefiada por Berik, na qual eles realizaram uma cruzada pagã à Roma. Na situação, três navios foram utilizados nos quais os guerreiros eram descendentes dos legendários clãs dos Ostrogodos, Visgóticos e Gepid. O império de Roma temia esses guerreiros, e os monges os identificavam como sendo descendentes de Gog, um chefe bárbaro mencionado na Bíblia. O rei gótico Theodoric fundou seu reino na Itália no ano 448 D. C. Apesar da aristrocracia da Itália e Espanha clamarem por sua descendência gótica, a palavra Gótico tornou-se logo sinônimo de paganismo, terror e escuridão. Como metáfora, o termo Gótico foi usado pela primeira vez no início da Renascença, para designar pejorativamente a tendência arquitetônica, criada pela Igreja Católica, da baixa Idade Média e, por conseqüência, toda produção artística deste período. Assim, a arquitetura foi classificada como gótica, referindo-se ao seu estilo "bárbaro", se comparado às tendências românicas da época: imagens pintadas sem noções aprofundadas de perspectiva e, subjetivamente, corroídas por simbologias fantásticas de santos e mártires. No século XVIII, como reação ao Iluminismo, surge o Romantismo que idealiza uma Idade Média, que na verdade nunca existiu. Durante o Romantismo, a arte Gótica foi valorizada e tornou-se sinônimo de, acima de tudo, inspiração. Podemos dizer que o Romantismo foi, por essa razão, uma Renascença do Gótico.
Nesse período o termo Gótico passa a designar também uma parcela da literatura Romântica. Como a Idade Média também é conhecida como "Idade das Trevas", o termo é aplicado como sinônimo de medieval, sombrio, macabro e por vezes, sobrenatural. As expressões Gothic Novel e Gothic Literature são utilizadas para designar este sub-gênero Romântico, que trazia enredos sobrenaturais ambientados em cenários sombrios como castelos em ruínas e cemitérios. Assim, o termo Gothicism, de cunho inglês, é associado ao conjunto de obras da literatura gótica. Em várias artes, o grotesco também inspirou a criação de obras sombrias e inquietantes: Beethoven, com sua Sonata ao Luar, suscita a melancolia íntima – e antes dele Bach, com sua Tocata e Fuga em ré menor para órgão desperta o macabro, inspirando diversas gerações de Fantasmas da Ópera. Isso sem mencionar Saint-Saëns, com sua Dança Macabra, inspirada numa figura medieval na qual figuras cadavéricas dançam alegremente. Assim vemos também na arquitetura e na atual fotografia com técnicas de Photoshop a sedução diante de um mundo misterioso e desconhecido que desperta uma inquietação e uma vontade árdua de produzir mais obras exteriorizando sua inquietação, seu tabu, sua vontade pela vida desvirtuada e pelo fim impiedoso desta.
Escritores diversos fizeram sua própria obra escrita com o sangue vertente de suas veias criativas – sejam no movimento Barroco, no Romantismo inspirados por Byron, sejam no simbolismo, sejam nos sites e blogs dedicados à sub-cultura Gótica – o terror, o assustador, o grotesco continuam a amedrontar a mente humana.
A Estética obscura nos acompanhará até quando a morte, a guerra, a angústia e a imaginação fizerem parte de nossas vidas.

FIM

Emili Suani Machado Marcondes de Albuquerque, graduada em Letras pela FAFIUV, cursando especialização em Língua Portuguesa e Literaturas pela FAFIUV.

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