O vento sopra ardentemente. O céu, qual manto lúgubre no túmulo cerúleo da noite, curva-se diante da onipresença do luar. Impiedoso, vibrante, mas tão gélido e distante... parece zombar timidamente de quem o contempla. Parece ser um vazio impreenchível, um vácuo interno que lateja incessantemente em sua caixa torácica. Parece ser uma luz fugaz que ilumina parcamente a alma insone. Parece, apenas parece...Os suspiros estrangulados do peito moribundo confundem-se com as maldições que são sussurradas pelo ar soprado entre os galhos taciturnos das árvores frondosas. As frases emudecidas que elas emanam são as mesmas que rutilam em seu cérebro, e sua surdez momentânea parece ser a antítese da razão pela qual somente ele consegue ouvi-las... esses presságios incógnitos, advindos da sapiência das bruxas evanescentes que esquivam-se nas sombras das asas noturnas... essas inspirações de musas distorcidas e encarniçadas pela embriaguez das trevas...O instrumento natimorto a sua frente sente as primeiras pulsações de vida. Os dedos quentes seguem pelas farfalhantes teclas. O enfadonho dedilhado do piano, que divide arpejos e marcações de notas duplas com a intensidade fraca, ressuscita a dor íntima. O passado, trancafiado em um baú negro, começa a ser exposto mentalmente, e acompanha de maneira sôfrega os olhos absortos nos movimentos de suas falanges. A fresta da janela nua, entreaberta, debatendo-se levemente ao andamento do vento, deixa que o luar novamente o atinja. O luar, este amaldiçoado e ao mesmo tempo abençoado companheiro da solidão dispersa, o único a acariciar sua face, o único a dividir o momento de silêncio – a pausa inquietante que rejubila-se ao ser esquartejada pelas notas aveludadas de uma melodia recolhida em acidentes musicais.Um rouxinol longínquo deixa seu canto rolar por sobre o silêncio noturno. Então, cordas trêmulas acompanham imaginariamente o seu instrumento, que prossegue melancolicamente, porém solícito ao mago que o faz cantar. Os metais arredondados surgem, mas sempre com uma humildade forçosamente triste. Todos os sons dos instrumentos crescem, os acordes do piano tornam-se mais fortes, e o desespero que é novamente acalmado pelas lágrimas dos violinos e violas não demora a se inquietar mais uma vez. Seus olhos brunos voltam-se para a pardacenta imagem que está atrás da janela. A tela, que transmite a paisagem adormecida pelo luar tenso, toma como moldura a sua alcova. O ambiente úmido e abandonado esquece-se, também, de seu próprio inquilino. Mesmo porque o ser hipnotizado pelo poder de Orfeu deixa de lado todas as suas necessidades, todos os seus anseios, todos os seus ardentes desejos, e deixa-se levar exclusivamente pela orquestração mental que lateja em seu cérebro.Seu coração palpita. Consegue sentir sua alteração rítmica em contraste com a calmaria de sua composição. O ansioso órgão denuncia emudecidamente a sua ansiedade diante daquela que parece querer engoli-lo a qualquer custo. A noite tenta sorver sua companhia, esmaga seus ossos com os dentes amortalhados da melancolia, e deglute a música composta somente para ela própria. Agora a escuridão ameaçadora quer acolhê-lo mais uma vez. Seus braços macabros estendem-se ao seu redor como os braços afáveis de uma mãe que quer confortar desesperadamente o seu rebento. Nesse abraço íntimo, quer cantar-lhe uma berceuse desvelada, e seu primogênito então reclama: “Canção de ninar? Não! Quero uma sonata...” O sono, aos poucos, vai conquistando o indivíduo a prantear em silêncio. Sua respiração torna-se lenta, densa e escura... está a inalar a atmosfera tóxica que criara imaginariamente ao exumar os pesadelos sepultados como indigentes. A exaustão da carne é a exposição do seu tema principal, quando planeja o ritardando do piano até a morte da melodia, e após breve pausa, as cordas e madeiras exalam dois últimos suspiros de quem adormece e pranteia em silêncio.
Emili Albuquerque
Acadêmica de Letras da FAFIUV
Acadêmica de Letras da FAFIUV
Imagem: Capade Felicien Rops para Flores do Mal, de Baudelaire
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