Em 1975, o poeta Paulo Leminski trabalhava na PAZ, uma agência publicitária de Curitiba. Naquele ano, ele finalizou o romance-idéia Catatau, que vinha escrevendo desde 1966, e que narrava, numa verborragia alucinada, a possível vinda do filósofo racionalista René Descartes para o Brasil, nas invasões holandesas, sob a chefia de Maurício de Nassau. Antes do lançamento do livro, alguém na agência sugeriu uma campanha promocional em forma de cartaz. O objetivo era chamar a atenção através do impacto da mensagem. Toninho Vaz, o biógrafo do poeta, em O bandido que sabia latim, lembra que Leminski conversou com o fotógrafo Dico Kremer e, juntos, «decidiram fazer uma foto do autor nu, como John Lennon e Caetano Veloso, num fundo infinito». A imagem foi realizada. Nela, Leminski aparece encobrindo o sexo de pernas cruzadas. O texto que acompanha a fotografia é sucinto, lê-se apenas: Catatau. Ótimo, uma imagem vale mais do que mil palavras, diz o ditado. A Fundação Cultural de Curitiba ainda guarda alguns exemplares do cartaz, que na época foi colado em murais de bares, cafés e livrarias de Curitiba. Leminski, como bom artista intersemiótico que era, sabia o que estava fazendo. No mundo contemporâneo, a propaganda é fundamental. A estranha fotografia, que foi reproduzida na capa da terceira edição da obra, organizada em 2004, por Décio Pignatari (e que é reproduzida também na capa desta edição do urtiga!), é interessante por vários aspectos. Gostaria de assinalar aqui apenas um. Quando a vi pela primeira vez lembrei imediatamente do Abaporu (antropófago), de 1928, de Tarsila do Amaral, que inspirou Oswald de Andrade a fundar e teorizar na literatura modernista o tema da Antropofagia. Oswald vai buscar na prática antropofágica da sociedade indígena a fonte para a sua produção crítico-poética. Mas não se trata apenas de uma questão estética. A concepção é, essencialmente política e ideológica. É a antropofagia como uma resposta do colonizado ao colonizador, o que o cubano Lezama Lima, interessado na questão do barroco, chamou de arte da contra-conquista, contrapondo o barroco europeu (arte da contra-reforma) à proliferante e protéica cultura latino-americana do século XVII, que no Brasil foi muito bem representada por Aleijadinho. Assim como no Abaporu, os pés de Leminski, na imagem, são postos em evidência, devido ao posicionamento da câmera fotográfica. E esse detalhe me parece fundamental. Explico. Oswald valorizou o primitivismo, simbolizado no quadro de Tarsila por um indígena que, ligado à terra, tem os pés maiores que a cabeça. Não à toa, em 1929, um ano depois da publicação do Manifesto Antropófago, George Bataille publicou na revista Documents, na França, um verbete intitulado «Dedão do pé», no qual defendia que o pé é a parte mais humana do corpo. Para Oswald de Andrade, a figura do primitivo deveria inspirar em todos os brasileiros atos de patriotismo. Tocado pelas idéias dos Essais, do humanista Montaigne, o poeta via na sociedade selvagem um modelo ideal de comunidade. Mas não se tratava de um índio romântico; Oswald se referia ao canibal. Aquele que deglute o colonizador, a sua cultura, mesclando-a com a nossa, que deveria ser, assim, uma arte de exportação. Portanto, Oswald não era um xenófobo, ou um nacionalista à maneira dos românticos do século XIX. O canibalismo, nesse caso, não se caracterizava como um gesto de violência, já que esse antropófago comia para assimilar ou homenagear o outro, e não para destruí-lo (vale lembrar que Cannibale é o nome da primeira revista Dada, lançada na mesma década por T. Tzara). Mas a despeito do pé do Abaporu e do pé de Leminski, que relações podemos estabelecer entre a obra de Oswald e a do poeta para-naense? O poeta Manoel Ricardo de Lima observa que o autor de Catatau encontrou em Oswald a possibilidade de redescobrir o verdadeiro sentido da poesia brasileira. Por meio da Poesia Concreta, Leminski se aproximou das experi-mentações vanguardistas para potencializar uma proposição libertadora, cujo centro temático estabelecia uma correlação com a proposta modernista de 22. Daí a abundância, em Leminski, dos poemas-minuto, do humor e da piada. No texto «Teses, Tesões», publicado em Ensaios e Anseios Crípticos, o escritor analisa o legado do modernismo de 22, concluindo que com ele o poeta brasileiro deixou de ser aquele “bom selvagem”, o tradicional doce bárbaro, cantor do indígena silvícola e passou a ser um poeta crítico, “capaz do verbo lírico, e muito capaz de falar sobre sua prática”. O que, de certa forma, o antropófago Leminski sempre buscou fazer – este homem de pé grande, kamiquase canibal!
Caio Ricardo Bona Moreira
Prof. de Literatura da FAFIUV
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