terça-feira, 25 de agosto de 2009

A lavoura cansada de Raduan Nassar (Parte III - Final) - urtiga n°6

«Cale-se! Não vem desta fonte a nossa água, não vem destas trevas a nossa luz, não é a tua palavra soberba que vai demolir agora o que levou milênios para se construir; ninguém em nossa casa há de falar com presumida profundidade, mudando o lugar das palavras, embaralhando as idéias, desintegrando as coisas numa poeira, pois aqueles que abrem demais os olhos acabam só por ficar com a própria cegueira; ninguém em nossa casa há de padecer também de um suposto e pretensioso excesso de luz, capaz como a escuridão também de nos cegar; ninguém ainda em nossa casa há de dar um curso novo ao que não se pode desviar (...)» Raduan Nassar, em Lavoura Arcaica


Lavoura Arcaica rouba-nos a cada página. Somos arrebatados por uma força estranha que, por vezes, nem mesmo identificamos, apenas sentimos, por isso inefável, embora seja construída com palavras. Trata-se de um tecer textual capaz de «arrancar a alma do corpo»: «(...) que essa mão respire como a minha, ó Deus, e eu em paga deste sopro voarei me deitando ternamente sobre o Teu corpo, e com meus dedos aplicados removerei o anzol de ouro que Te fisgou um dia a boca, limpando depois com rigor Teu rosto machucado, afastando com cuidado as teias de aranha que cobriram a luz antiga dos Teus olhos (...)».
Em um estudo da obra nassariana, intitulado Uma Lavoura de Insuspeitos Frutos, Renata Pimentel Teixeira chama a atenção para o caráter desnorteador de Lavoura Arcaica. Uma obra que pula a cerca das classificações e corre livre no campo do variado. À primeira vista, poderia até ser chamada de romance, mas sua estrutura circular, sua linguagem poética e sua carga de dramaticidade vão além do que se espera, em sua formulação tradicional. O texto nassariano é, pois, uma obra de múltiplos gêneros. É romance por sua base mestra no encadeamento de episódios; é teatro por dirigir o vigor do texto para as personagens. É poesia por suas ricas metáforas, uso de aliterações, repetições e sinestesias. É teologia, porque invoca uma ordem transcendente, uma tradição vertical, uma voz que clama pelo infinito e busca encontrar sentido no tempo e na história: «(...) que culpa temos nós dessa planta da infância, de sua sedução, de seu viço e constância? Que culpa temos nós se fomos duramente atingidos pelo vírus fatal dos afagos desmedidos? que culpa temos nós se tantas folhas tenras escondiam a haste mórbida desta rama?».
O silêncio de Raduan é como a encarnação do ser em busca de seu sentido. Para o escritor, os sentimentos dos outros não deveriam nos ser emprestados. Os nossos deveriam nos bastar. A fala de Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa, decifra a filosofia de vida de Raduan: «A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar». Talvez a verdadeira vida seja aquela que se encontra ausente do mundo, aquela que sem exageros sempre busca encontrar no infinito uma razão para sua existência.
Segundo Nassar, o que o levou a escrever e depois parar foi a paixão pela literatura, que ele não sabe como começa e porque acaba. O silêncio é definitivo para o escritor, como se o silêncio tivesse o elegido. Provavelmente o escritor viva sob um tempo espelhado em signos fecundos e assombrados: «Na modorra das tardes vadias na fazenda, era num sítio lá do bosque que eu escapava aos olhos apreensivos da família; amainava a febre dos meus pés na terra úmida, cobri meu corpo de folhas e, deitado à sombra, eu dormia na postura quieta de uma planta enferma vergada ao peso de um botão vermelho; não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor, velando em silêncio e cheios de paciência meu sono adolescente? que urnas tão antigas eram essas liberando as vozes protetoras que me chamavam da varanda? de que adiantavam aqueles gritos, se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera? ( meu sono, quando maduro, seria colhido com a volúpia religiosa com que se colhe um pomo)». Uma vida construída com os alicerces enigmáticos do Silencio.
Nesse sentido, o narrador apaixonado, André, encontra estímulo para sua revolta nas palavras do pai, que rejeita seu verbo «sujo» e impaciente: «O mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio, é contra ele que devemos esticar o arame de nossas cercas, e com as farpas de tantas fiadas tecer um crivo estreito, e sobre este crivo emaranhar uma sebe viva, cerrada e pujante, que divida e proteja a luz calma e clara da nossa casa, que cubra e esconda dos nossos olhos as trevas que ardem do outro lado e nenhum entre nós há de transgredir esta divisa».
Pensando na solidão da «Lavoura cansada» de Raduan Nassar, termino esta pequena reflexão parafraseando Michel de Montaigne (1533- 1592), o grande pensador e escritor humanista da renascença francesa:
«Nós buscamos outras realidades porque não sabemos
como desfrutar da nossa; e saímos de dentro de nós mesmos
pelo desejo de saber como é o nosso interior».
Raduan Nassar sabe muito bem o que significa esta «outra realidade» que muita vezes fica adormecida no silêncio interior de cada ser humano.

Daniel Baez Brizueña
Acadêmico de Letras da FAFIUV

Raduan Nassar
Únicas obras publicadas:
Lavoura Arcaica (1975)
Um Copo de Cólera (1978)
Menina a caminho (1994)

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