A recente polêmica envolvendo o livro Amor à Brasileira, uma reunião de contos organizada pelos escritores Caio Porfírio Carneiro e Guido Fidélis, reascende uma antiga discussão sobre os limites da liberdade de expressão e o papel do Estado no gerenciamento de poderes e na interdição dos discursos. Em algumas cidades do país, autoridades se posicionaram contra a veiculação do livro nas escolas, alegando que a linguagem dos contos é pornográfica e não aconselhável aos jovens estudantes. A patrulha de livros didáticos e paradidáticos vem se tornando moda no Brasil. Outro exemplo foi o romance Aventuras Provisórias, de Cristóvão Tezza, que havia sido distribuído pelo governo de Santa Catarina para as escolas, mas foi recolhido recentemente por iniciativa da Secretaria de Estado da Educação, que considerou o vocabulário do livro prejudicial aos estudantes. O fato nos convida a pensar com cautela sobre o referido acontecimento.
Para discutir sobre o assunto, o jornal urtiga! convidou o pesquisador Alexandre Nodari, que é mestre em Literatura e doutorando em Teoria Literária pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), onde desenvolve pesquisa sobre a censura. Alexandre Nodari é editor de Sopro - publicação quinzenal sobre arte e política (http://www.culturaebarbarie.org/sopro) - e escreve no blog Cultura e Barbárie (http://www.culturaebarbarie.org/blog). Participou do livro O Comum e a Experiência da Linguagem (UFMG), organizado pelos professores César Guimarães, Georg Otte e Sabrina Sedlmayer, publicação destinada a pensar sobre as investigações conceituais de Giorgio Agamben, em A comunidade que vem.
Para discutir sobre o assunto, o jornal urtiga! convidou o pesquisador Alexandre Nodari, que é mestre em Literatura e doutorando em Teoria Literária pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), onde desenvolve pesquisa sobre a censura. Alexandre Nodari é editor de Sopro - publicação quinzenal sobre arte e política (http://www.culturaebarbarie.org/sopro) - e escreve no blog Cultura e Barbárie (http://www.culturaebarbarie.org/blog). Participou do livro O Comum e a Experiência da Linguagem (UFMG), organizado pelos professores César Guimarães, Georg Otte e Sabrina Sedlmayer, publicação destinada a pensar sobre as investigações conceituais de Giorgio Agamben, em A comunidade que vem.
ENTREVISTA COM ALEXANDRE NODARI
concedida a Caio Ricardo Bona Moreira1 – Em um texto sobre a mídia contemporânea, “Censura, um paradigma (ou sobre o Abrandamento)”, você observou que os veículos de comunicação passaram de censurados a censores. Como isso vem acontecendo?
R.: Na verdade, apontei para o fato de que os mesmos veículos da grande mídia que, em sua maioria, apoiaram o golpe militar-civil de 64, muitas vezes servindo de Cães de guarda (para usar a expressão que intitula o livro de Beatriz Kushnir sobre a participação da Folha da Tarde) do regime, agora reconstroem uma imagem do passado em que figuram como baluartes da luta democrática. E, ao mesmo tempo que fazem isso, demonizam os que de fato lutaram contra a ditadura (basta lembrar a pecha de “terrorista” que querem colar, de qualquer jeito, mesmo se precisar usar uma ficha falsa, na Dilma Rousseff). Acredito que podemos identificar nisso um movimento de indeterminar o cenário histórico, de esfumá-lo, tornando difícil identificar os atores, ações e idéias políticas. Isso fica patente, por exemplo, no posicionamento da mídia a respeito da punição dos torturadores do regime militar (me refiro à reinterpretação da Lei de Anistia): os jornalões insistem que isso iria reabrir “feridas históricas”, quando, na verdade, é um procedimento essencial em toda abertura democrática (aconteceu na África do Sul pós-apartheid, está acontecendo agora no Chile e na Argentina, etc.) – é preciso identificar, determinar, para daí sim perdoar (o que não quer dizer esquecer). (Trocando certos implicados, é o mesmo pano de fundo sobre o qual se arma o pseudo-debate das ações afirmativas). É esta visão obtusa da Lei de Anistia, verdadeira herança maldita que a ditadura deixou para a Nova República, que, ao indeterminar torturados e torturadores, militares e militantes, permite que a Folha de S. Paulo promova sua “reforma ortográfica” (um eufemismo pra revisionismo histórico) e chame a ditadura de ditabranda (e ainda tenha a cara de pau de acusar de autoritários os que a criticaram por isso). Do mesmo modo, a mídia usa este cenário de indeterminação discursiva para qualificar de ditatoriais governos que, gostemos deles ou não, promovem mudanças dentro dos marcos institucionais democráticos (um artigo publicado no La Nación chamava o kirchnerismo de “intraditadura” – ditadura dentro da democracia – , um termo que os jornalões brasileiros adorariam ter cunhado para se referir a Chavéz, Morales ou à proposta do terceiro mandato de Lula). Um exemplo histórico talvez ajude a elucidar a questão. No começo dos anos 1970, o ditador indonésio Suharto, já tendo dominado e/ou cooptado os veículos de comunicação, promoveu uma reforma ortográfica que tinha como intenção, nas palavras de Benedict Anderson, “estabelecer nítida separação entre o que se escrevia durante a ditadura e tudo o que se escreveu antes dela”. Ou seja, qualquer texto escrito com a ortografia antiga era facilmente identificado – e tido como suspeito, e desse modo, foi possível reescrever o passado: a revolução - que termina por levar Suharto ao poder - é rebatizada de “Guerra da Independência”, uma mentira. A “reforma ortográfica” que a mídia promove (evidentemente não me refiro àquela que tira o acento de idéia, mas à mais perversa, que indetermina toda idéia) vai nesse sentido, com a diferença de que a ideologia a ser sustentada é a ausência de toda ideologia (lembremos que para se eleger, Lula, mesmo visivelmente convertido ao neoliberalismo, teve de publicar a famosa “Carta ao Povo Brasileiro”, em que se comprometia a cumprir os contratos, para se eleger), e de que o regime a ser sustentado é uma democracia amorfa que não ameace o status quo nem promova plebiscitos. É evidente que os atores políticos, em especial os partidos, tem sua dose de participação nesse cenário, mas a hegemonia discursiva da indeterminação é propagada e exigida pela mídia que se arroga ao direito de ser o famoso Quarto Poder (não eleito, nem concursado para tanto). É este cenário de indeterminação que explica uma nostalgia meio macabra de jovens da minha geração que dizem que queriam ter vivido a ditadura: de fato, era mais fácil identificar o inimigo.
2 – Certas obras que foram consideradas prejudiciais em determinados momentos, em outros são “louvadas” pela comunidade em geral, como é o caso da peça “O Rei da Vela” de Oswald de Andrade, que você analisou em artigo. O tratamento da peça, por parte da censura, foi bastante ambíguo. Não seria o momento propício para questionarmos não necessariamente a “patrulha”, mas a maneira como ela vem tentando agir sobre as representações sociais?
R.: Esta reavaliação tem a ver com o cenário que tentei identificar na resposta anterior: os produtos artísticos que se configuraram (por vontade de seus autores ou não) como marcos na luta contra a ditadura são reivindicados por setores que os negaram, como se todos os brasileiros tivessem se mobilizado, por exemplo, contra o exílio imposto a Caetano Veloso. Sabemos que não foi assim – e que foi parte da juventude de 68, tida como tão aguerrida que vaiou o cantor quando ele apresentou “É proibido proibir” no III Festival Internacional da Canção. Todavia, a censura de O Rei da Vela que você menciona talvez explique esta mudança de percepção. A peça foi escrita em 1937 (em plena Era Vargas), mas só foi encenada pela primeira vez neste mesmo ano de 1968 pelo Teatro Oficina. Porém, ela só foi censurada no ano seguinte, quando foi proibida e depois liberada com alterações negociadas entre os censores e o grupo teatral. O teor dessas modificações impressiona, pois não alteram propriamente o conteúdo altamente crítico da peça (os personagens, os enredos são os mesmos, nenhuma cena foi totalmente cortada, etc.), mas o vocabulário em que este era enunciado: o que a censura exigiu foi, basicamente, a substituição de certos significantes. Assim, “revolução” virou “reforma”, “ingleses e americanos” se converteram em “todos”, a “polícia” se indetermina no “eles”, etc. Esta obsessão da censura pelos significantes é bem conhecida (há até exemplos anedóticos: por exemplo, os censores quiseram substituir “lavagem” por “enema” em uma encenação de O doente imaginário), a ponto de Cristina Costa argumentar, no seu estudo Censura em cena, que “A negociação pelas palavras é a moeda do processo censório”. Como explicar essa neurose? Ernesto Laclau elucidou a importância que os significantes vazios (em outras palavras, os nomes), têm para a política: eles permitem aglutinar reivindicações díspares e dispersas sob uma mesma chancela (é o caso do peronismo argentino, mas também do trabalhismo inglês, do comunismo, ou mesmo de todo nome de Nação). Os significantes vazios e também os excedentes, como os palavrões (a censura volta e meia substituía “foda-se” pelo mais ameno “dane-se”), produzem efeitos que passam ao largo da racionalidade comunicativa. Produzem determinações e repulsas políticas e afetivas. Neste sentido, a censura, no exemplo em questão, cortava a articulação entre um nome e um acontecimento ou idéia.
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(Zé Celso Martinez Correa e Oswald de Andrade)
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É evidente que o sentido da peça continuava inteligível, mas ela perdia – e isso é tudo em arte e política – seu aspecto superficial, isto é, sua forma. O que ocorre hoje é diferente: O Rei da Vela pode ser encenado de “corpo inteiro”, com direito a “revolução”, “ingleses”, “polícia”, e mesmo assim ser celebrada, porque esses significantes vazios que eram determinados pelo contexto da ditadura, se indeterminaram. Poderíamos arriscar dizer que a censura difusa que temos hoje – e que se consubstancia num slogan publicitário recente: Coca-cola, viva as diferenças – não visa mais substituir nomes por significantes indeterminados, mas manter os significantes vazios indeterminados. Em suas Quinze Teses sobre Arte Contemporânea, Badiou observou muito bem que “O império já não censura nada” – e, de fato, a censura também se exerce na ausência de qualquer censura, estratégia que indetermina o sentido. Todavia, não vejo como saída a este estado de coisas um retorno ao passado, ou seja, não acho que necessariamente devemos determinar conteúdos aos nomes, ou criar novos nomes para aglutinar novas reivindicações – é a estratégia do “socialismo do século XXI” de Chavéz. Temos que lembrar que os significantes vazios, os nomes, são, além de terreno do poder, morada da poesia. Neles, as duas forças que atravessam a linguagem – censura e poder, por um lado, e poesia e ética por outro – se chocam. Resta saber se usaremos o caráter vazio da nomenclatura (da linguagem como um todo, friso) para capturar a vida por meio da determinação de uma identidade) ou se veremos neles a chave para imaginar o que, de fato, é uma comunidade.
(Cena da adaptação da peça O Rei da Vela)
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3 – Ultimamente, estamos vendo aflorar uma “patrulha” contra a distribuição de determinados livros didáticos e paradidáticos, considerados como prejudiciais para a formação dos jovens. Para você, o que é pior, o conteúdo de tais obras, ou a “patrulha” operada contra elas? Além disso, geralmente as pessoas pensam que a censura é uma imposição de “cima para baixo” e não percebem que, muitas vezes, ela é consentida pela própria sociedade. Até que ponto esse “falso” conhecimento contribui para a manutenção de um instrumento repressor?
R.: A idéia de que a censura acabou com a “abertura” democrática é incorreta. Inclusive, a censura está inscrita na nossa Constituição no mesmo dispositivo – veja só – que garante a liberdade de expressão: “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. A vedação do anonimato (que coincide com a invenção da figura do autor) remonta aos primórdios da modernidade, sendo um instrumento de controle da circulação de idéias que permite determinar que certo escrito, certa idéia, provém de certa pessoa. É uma herança direta do ambiente de onde brotou o Index. Agora, se descermos ao plano das proibições específicas de obras, veremos, do mesmo modo, não há tanta liberdade quanto é proclamado. Uns poucos anos atrás, se formou uma aliança entre algumas ONGs, setores da direita da Igreja e uma comissão do Congresso, liderada por um deputado do PSOL, para combater a “baixaria” na televisão. O principal feito do grupo, que mais parece uma versão repaginada das antigas cartas das senhoras de família ao Ministro da Justiça e aos órgãos de censura, foi acabar com o programa do apresentador João Kleber na RedeTV. Além disso, há recorrentes casos de ações judiciais que tem como efeito a censura de blogs e o projeto de Lei do Senador Azeredo cunhado, com propriedade, de “AI-5 digital”. E temos também essa nova moda de patrulhar livros escolares. Os jovens são sempre o objeto preferencial dos censores, oficiais ou não – sempre se trata de não desvirtuar as novas gerações, de preservá-las, eufemismos para “manter o status quo”. E o curioso é como esse discurso censório contamina. Um dos poemas apontados pela patrulha (que envolve pais, professores e jornalistas que descobriram um novo filão) é o “Manual de auto-ajuda para supervilões” do Joca Terron, um poema irônico, de uma ironia óbvia. A histeria é tanta que até o autor se manifestou defendendo o recolhimento dos livros, pois o poema seria recomendando para adolescentes e não crianças.
As justificativas para a proibição são estúpidas: no caso recentíssimo da gravura de 1540 de Theodore de Bry (imagem acima), que ilustra um empalamento aplicado por uma tribo indígena a um inimigo, uma mãe ficou com medo que seu filho ou um dos colegas repetissem o gesto de enfiar um pedaço de madeira no ânus de outro – será que ela acha que o filho, depois de assistir desenhos, sairá tentando atravessar precipícios como faz o Papa-Léguas quando foge do Coiote? Sempre que o assunto é esse, me lembro de uma resposta que o Paulo Henrique Amorim deu quando questionado sobre os programas televisivos centrados em cenas de violência aberta, de atuação policial, de catástrofes naturais, tais como Cidade Alerta, perguntando ao seu interlocutor onde ele achava que vivia, “na Suíça?” Nesse sentido, o que é mais violento, o poema de Terron ou as milhares de crianças que passam fome nas ruas e favelas do nosso país (provavelmente algumas delas estudantes que usariam o livro didático), a tortura indígena do século 16 ou a tortura nas delegacias de polícia ou em Guantánamo? Talvez as irrupções de violência de jovens americanos e europeus (quando saem atirando a torto e a direito em universidades/escolas para depois se matarem) não se deva tanto à presença constante de violência na mídia, mas tenha como uma de suas causas o fosso entre a violência constitutiva das sociedades (de que a violência na mídia é um sintoma) e a falta de mecanismos de leitura eficientes dessa violência (o saber tradicional das escolas, a opinião pública, etc., que visa por um politicamente correto hipócrita). Todavia, o patrulhamento dos livros escolares lança luz sobre alguns aspectos da censura. O primeiro diz respeito ao sujeito da censura. É um mito, pelo menos desde Freud, que a censura é um elemento externo: ela é interior ao sujeito – transpondo ao plano social, está inscrita no seio da sociedade (aqui é bom lembrar o famoso argumento de Foucault: “Temos que deixar de descrever sempre os efeitos do poder em termos negativos: ele 'exclui', 'reprime', 'recalca', 'censura', 'abstrai', 'mascara', 'esconde'. Na verdade, o poder produz, ele produz realidade, produz campos de objetos e rituais da verdade”). Não custa recordar, também, que a defesa da censura mais conhecida na história ocidental foi feita não por um estadista, mas por um filósofo, Platão (ou Sócrates), que sugeriu o banimento de certos poetas, sob o argumento dos efeitos nocivos que a poesia poderia provocar (e aqui entra o segundo aspecto: a censura sempre se preocupa com os efeitos, não com as causas, ela é um “remédio” que ataca os sintomas). Não por acaso, Oswald de Andrade o chamava de “patrono da literatura dirigida” e Carlos Astrada atribua a ele a invenção da “mentira cívica” – o que A República defende é que a mentira e a poesia sejam remédios ministrados por médicos e não práticos: Platão defende os hinos patrióticos, por exemplo, que produziriam bons efeitos. Do mesmo modo, na redescoberta moderna da censura (o censor romano antigo era aquele que tanto organizava o mapeamento da população – o censo – quanto patrulhava os costumes), o que é ressaltado pelos teóricos fazem essa retomada, como Jean Bodin, é o fato de que ela, ao contrário da lei, por demais geral, permite uma regulação mais próxima das pessoas, visando, no fundo, à auto-regulação destas, à sua educação. A censura chega lá “onde não chega a lei” (para usar a expressão que intitula um estudo de Lucia Bianchin), seu objetivo último é desaparecer, ou melhor, se internalizar. O patrulhamento dos livros escolares mostra isto: professores, alunos, autoridades e mesmo autores, todos pediram e/ou concordaram com a censura (inclusive, em alguns dos casos, as autoridades foram censuradas por não terem percebido e proibido antes). Quando, em uma sociedade tão violenta como a nossa, há consenso de que obras de arte produzem efeitos nocivos, fica claro que, para a censura operar, não é preciso um órgão censor – a censura já não precisa mais de si mesma.(FIM)
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