sábado, 4 de julho de 2009

Pedro Kilkerry: de poeta maldito a corpo estranho - urtiga! nº5

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ENSAIO





«O inconsciente será um poeta simbolista? Pois eu te digo: O inconsciente é um Rimbaud admirável». As palavras são de Pedro Kilkerry. Nelas, podemos perceber o mesmo deboche literário que levou o poeta a considerar Nietzsche um «bebedor bigodoso» e Eça de Queirós uma «cebola dourada para um bom prato literário». Aos poetas românticos não poupou críticas, pois odiava o sentimentalismo amoroso levado ao extremo, bem como a idealização indianista:
«Faiscava ferruginoso, um tanto cor de Gonçalves Dias! Ah! Dias, tua terra tem palmeiras, tem, tem (...)».
Pedro Militão Kilkerry, ou melhor, como ele dizia Pedro mil...e tão Kilkerry, nasceu na Bahia em 1885, e tem uma grande importância para a literatura brasileira. Apesar de não ter deixado nenhum livro publicado, seus achados são de valor literário inestimável.
Sua obra foi encontrada dispersa em revistas simbolistas da Bahia: Os Anais, Nova Cruzada, Via Láctea, A Voz do Povo, e em jornais como A Tarde e o Jornal Moderno. Foi recolhida inicialmente por seu colega de faculdade e amigo de boemia, Jackson de Figueiredo, no livro intitulado Humilhados e Luminosos, em 1921. Mais tarde, o poeta seria estudado por seu colega de trabalho Carlos Chiacchio. Em um dos textos do ensaísta, Kilkerry é considerado como o «cisne que disse o canto final da geração simbolista». Os trabalhos de Chiacchio foram apresentados por Andrade Muricy em Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, de 1952. Para Muricy, o poeta é a «figura mais singular do movimento simbolista baiano, a sua poesia é a mais requintada e artística, a de estética mais complexa e menos, diga-se, – provinciana, dentre a de todos os simbolistas do norte».
Sua obra foi comparada por Figueiredo com a de Mallarmé, Rimbaud, Laforgue e Gregório de Mattos. Muricy o comparou com Lautréamont. O poeta baiano, que conhecia várias línguas e era um leitor assíduo de Homero, Dante, Poe, Baudelaire e Nietzsche, foi também tradutor. Mas por que a ausência de uma obra, pelo menos no sentido tradicional em que a entendemos? A resposta é lançada por Chiacchio: «Não publicou porque não quis. Verso para livros tinha-os de sobra. Além dos manuscritos, tinha de memória a maior parte dos seus melhores versos. Mas sempre desprezou a publicidade, porque a julgava uma estupidez. De livros e versos, como de quaisquer outros, que não acudissem à necessidade pragmática da nossa inteligência, tinha horror».
O maior estudo realizado sobre o poeta esquecido, que seria considerado por Paulo Leminski como um corpo estranho na cidade de Salvador, foi realizado por Augusto de Campos, em sua magnífica obra intitulada Re-visão de Kilkerry, que recupera o escritor seqüestrado, colocando-o no seu devido lugar. O livro apresenta, além de uma biografia do poeta, uma reunião de poemas, devidamente analisados, e fragmentos das crônicas Kodaks, em que Kilkerry ensaia uma prosa modernista, antecipando de maneira surpreendente a linguagem cinematográfica, com humor negro e crítica ácida, que só seria explorada pelos brasileiros a partir da segunda década do século XX. Nesse sentido, poderíamos considerá-lo um precursor de Oswald de Andrade. Diz o poeta em uma de suas Kodaks: «O homem de hoje deve nascer com o instinto da modernidade (...) O costume é o grande assassino. Prendam o Sr. Costume e as senhoras tradições (...) O mundo está num bonde».
Em um artigo publicado na revista virtual Cronópios, Gilfrancisco dos Santos observa que as crônicas Kodaks constituem uma preciosidade da linguagem, «fundindo o que há de mais belo do realismo com a herança saudosista, erudita e sentimental do vernáculo parnasiano». Por meio da crônica, ao fazer denúncias e criticar os problemas sociais, Kilkerry assumia a literatura como missão, o que não era comum em poetas simbolistas. Para Augusto de Campos, o escritor não só compreendeu mais conscientemente que outros simbolistas o papel desempenhado na criação pelo subconsciente mais tarde valorizado pelo Surrealismo, como soube levar mais longe a liberdade de associação imagética, produzindo imagens inusitadas por meio de vocábulos literários. Por outro lado, buscou a capacidade de síntese. A consciência das limitações da sintaxe ordinária é mais aguda no poeta do que em qualquer outro do simbolismo brasileiro. Ao lado da síntese, inseria em suas poesias o interesse pela magia, pelo hermetismo e pelo misticismo, nunca o sentimentalismo. No dizer de Campos, sua obra possui a qualidade rara na poesia brasileira, da invulnerabilidade ao pieguismo, ao sentimentalismo, freqüentemente confundidos com a própria poesia: «Tal virtude, aliás, parece ínsita à personalidade do poeta». Pelo menos esse é o testemunho de Jackson de Figueiredo: «Pobre como talvez nenhum dos que compunham aquele grupo de boêmios sentimentais, era, em meio deles, o menos sentimental, mais esquivo a lamúrias e queixas». E o próprio Kilkerry, mais de uma vez, patenteou a sua desafeição pelo lirismo lacrimogêneo da nossa poesia com tiradas sardônicas e implacáveis.
Em um de seus primeiros poemas, «Cetáceo», literalmente mallarmaico, encontramos boas metáforas: «Coalha bebendo o azul um largo vôo branco», um dos mais belos versos da língua portuguesa. «Horas Ígneas», «Harpa Esquisita», «É o silêncio» são poemas em que o talento poético de Kilkerry se revela em sua absoluta maturidade. Na leitura de suas poesias encontramos vários recursos estilísticos, palavras fortes, agressivas, sinestesias, enjambement, elipses, neologismos, aliterações e assonâncias que contaminam os versos com musicalidade e arte. O poeta defendia a liberdade formal, chegando a dizer: «O metro é livre – vivamo-lo». Em «O Verme e a Estrela», que foi musicado por Cid Campos e Adriana Calcanhoto, encontramos a contrariedade do tudo e do nada: «Agora sabes que sou verme / Agora, sei da tua luz / Se não notei minha epiderme / É, nunca estrela eu te supus / Mas se cantar pudesse um verme / eu cantaria a tua luz!».
Para finalizar, poderíamos dizer que Kilkerry foi um poeta além do seu tempo, tendo «olhos novos para o novo», foi o Mallarmé brasileiro, e como um romântico (sua aversão), morreu de tuberculose em 1917. Quando fica sabendo da morte do amigo, Figueiredo lamenta: «Pobre Kilkerry! Morto também, apaga já aquela fagulha de gênio, a mais viva que vi brilhar na mocidade de minha terra».
Apesar de muita coisa ter se perdido do nosso poeta esquecido, como foram Sousândrade e Ernâni Rosas, a prodigiosa inteligência de seus versos é incontestável. Cada poema vale por vários, e o pouco que nos resta já é o suficiente para entendermos o que realmente pode significar a verdadeira poesia, bem construída e articulada.



Jucimara Garbos
Karine Bueno da Costa,

acadêmicas de Letras da FAFIUV




Mil e tão distante...


As fotos do poeta são tão escassas quanto os poemas e os dados biográficos. Cabe ao leitor-arqueólogo decifrá-lo, reinventá-lo depois de um tempo que o tratou sem flores.








Poemas de Pedro Kilkerry



É o Silêncio...

É o silêncio, é o cigarro e a vela acesa.
Olha-me a estante em cada livro que olha.
E a luz nalgum volume sobre a mesa...
Mas o sangue da luz em cada folha.
Não sei se é mesmo a minha mão que molha
A pena, ou mesmo o instinto que a tem presa.
Penso um presente, num passado. E enfolha
A natureza tua natureza.
Mas é um bulir das cousas... Comovido
Pego da pena, iludo-me que traço
A ilusão de um sentido e outro sentido.
Tão longe vai!
Tão longe se aveluda esse teu passo,
Asa que o ouvido anima...
E a câmara muda. E a sala muda, muda...
Àfonamente rufa. A asa da rima
Paira-me no ar. Quedo-me como um Buda
Novo, um fantasma ao som que se aproxima.
Cresce-me a estante como quem sacuda
Um pesadelo de papéis acima (...).

Amor volat

Não, não é comigo que ele nasceu... A sua asa
Só a um tempo ruflou desse modo, tamanho!
Bateu-me o coração... E outro não sei que, estranho,
Rudamente o rasgou como o seu bico em brasa...

Entrou-mo todo, enfim, como quem entra em casa
E em meu sangue, a cantar, fez de um boêmio no banho!
Oh! Que pássaro mau! E eu nunca mais o apanho!
Vês: estou velho já. Treme-me o passo, e atrasa...

Olha-me bem, no peito, o rubro ninho aberto!
Hoje fúnebre, a piar, uma estrige ao telhado
E o meu seio vazio! e o meu leito deserto!

E vivo só por ver, como curvo aqui fico,
Esse pássaro voar largamente, um bocado
de músculos pingando a levar-me no bico!

Cetáceo

Fuma. É cobre o zênite. E chagosos do flanco
Fuga e pó, são corcéis de anca na atropelada;
E tesos no horizonte, a muda cavalgada.
Coalha bebendo o azul um largo vôo branco.

Quando e quando esbagoa ao longe uma enfiada
De barcos em betume indo as proas de arranco.
Perto uma janga embala um marujo no banco
Brunindo ao sol brunido a pele atijolada.

Tine em cobre o zênite e o vento arqueja o oceano
Longo enforca-se a vez e vez e arrufa,
Como se a asa que o roce ao côncavo de um pano.

E na verde ironia, ondulosa de espelho
Úmida raiva iriando a pedraria. Bufa
O cetáceo a escorrer d água ou do sol vermelho.

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