"(...) eu, o filho torto, a ovelha negra que ninguém confessa, o vagabundo irremediável da família, mas que ama a nossa casa, e ama esta terra, e ama também o trabalho, ao contrário do que se pensa; foi um milagre, querida irmã, foi um milagre, eu te repito, e foi um milagre que não pode reverte" Raduan Nassar, em Lavoura Arcaica
Parte 1
Raduan Nassar, nasceu em Pindorama, interior de São Paulo. Filho de João Nassar e Chafika Cassis, de origem Libanesa, Raduan vem se destacando como um dos principais escritores contemporâneos. Estudou Filosofia, Direito e Ciências Sociais. A lavoura arcaica, de Raduan Nassar, não é uma historia qualquer. O escritor, por meio de um fantástico estilo, que oscila entre a historia e a tragédia, predizendo o fim das tradições patriarcais, foi capaz de estruturar sua visão um tanto crítica a toda tradição que exige em demasia obediência e submissão. A “Lavoura cansada” de Raduan mostra a incongruência entre a beleza das palavras e o desastre que produz as ações humanas levadas ao individualismo extremo.
Nesse sentido, os críticos especulam que Raduan, em sua obra prima de Lavoura Arcaica (1975), expôs em demasia sua interioridade, por isso, acabou-se cansando até da criação literária, porque existem tragédias e tradições que terminam cansando até o mais ilustres dos homens.
Lavoura Arcaica é um texto onde se entrelaçam o novelesco e o lírico, através de um narrador em primeira pessoa. André, o filho encarregado de revelar o avesso de sua própria imagem e, conseqüentemente, o avesso da imagem da família. Assim, a obra é sobretudo uma aventura com a linguagem, uma linguagem que mistura cansaço, tédio e revolta. Este conflito entre indivíduo, leis e sociedade compõe os conflitos do próprio personagem narrador. “A Lavoura Cansada” de Raduan fala do problema da integração entre o indivíduo e a sociedade, em que a particularidade das vontades e das dores de André não consegue coexistir com o mundo em que ele vive, um mundo intolerante ao novo, supersticioso em demasia para aceitar as mudanças do seu tempo.
Por isso, as ambigüidades das palavras de André confrontadas com suas atitudes somam-se às ambigüidades do tempo construídas na narrativa. Neste confronto pode-se explorar no texto o trabalho que Raduan Nassar realiza entre o que se pode chamar de aventura romântica e destino trágico na “Lavoura cansada” dos seus personagens.
Porem, a aventura romântica é o conflito apresentado pelas palavras entre a busca pela experiência e a vivência do acaso, o ímpeto de sair ao campo da vida e transformar sua história e seu entendimento do mundo. O destino trágico é a vivência de uma história prefigurada, escrita antes mesmo de a personagem tomar ciência dela, em que o destino impera sobre a vontade. Assim, na aventura romântica, o tempo é o tempo que se abre aos acasos das ações humanas. E no destino trágico, o tempo trava seus ponteiros, deixando de existir, acontecendo à parte da história; ou confunde-se com o tempo mítico (da tradição milenar da costa pobre do Mediterrâneo, unindo em si mesmo o elegante com o efêmero, a fé com a tradição o religioso perverso com o pagão proibido), que é aquele em que o destino retorna, num tempo cíclico.
A obra mistura o hoje, o ontem e o sempre. Mistura repulsa e paixão. Mistura o perene à descoberta. Lavoura Arcaica se desvencilha do pré-estabelecido como forma de se fazer pertencer. Sai da casa da tradição em busca do seu próprio caminho. É filha pródiga que escapa da vigilância do seu senhor, mas que logo volta ao lar, convicta de que nada poderá encontrar fora dos limites da história. O circulo vicioso das tradições é mais forte que a vontade de liberdade e de auto-superação.
Concluindo esta primeira parte é bom lembrar que a obra é sem dúvida um romance apaixonante tanto para os leitores leigos como para os especialistas em literatura. Oferece material de deleite tanto para um quanto para outro. Um texto que coloca o leitor diante da poesia e da intensidade escondida nos fatos mais corriqueiros da vida. Uma obra de todos os lugares que acaba por se fixar naquele que cada um particularmente busca. Que fala de tradição enquanto remete a um tempo imensurável e individual. A história humana pode ser chamada de uma “Lavoura cansada” de tanto tradicionalismo sem fundamento histórico, onde, as virtudes e os valores terminam se afogando de tanta monotonia.
Nesse sentido, os críticos especulam que Raduan, em sua obra prima de Lavoura Arcaica (1975), expôs em demasia sua interioridade, por isso, acabou-se cansando até da criação literária, porque existem tragédias e tradições que terminam cansando até o mais ilustres dos homens.
Lavoura Arcaica é um texto onde se entrelaçam o novelesco e o lírico, através de um narrador em primeira pessoa. André, o filho encarregado de revelar o avesso de sua própria imagem e, conseqüentemente, o avesso da imagem da família. Assim, a obra é sobretudo uma aventura com a linguagem, uma linguagem que mistura cansaço, tédio e revolta. Este conflito entre indivíduo, leis e sociedade compõe os conflitos do próprio personagem narrador. “A Lavoura Cansada” de Raduan fala do problema da integração entre o indivíduo e a sociedade, em que a particularidade das vontades e das dores de André não consegue coexistir com o mundo em que ele vive, um mundo intolerante ao novo, supersticioso em demasia para aceitar as mudanças do seu tempo.
Por isso, as ambigüidades das palavras de André confrontadas com suas atitudes somam-se às ambigüidades do tempo construídas na narrativa. Neste confronto pode-se explorar no texto o trabalho que Raduan Nassar realiza entre o que se pode chamar de aventura romântica e destino trágico na “Lavoura cansada” dos seus personagens.
Porem, a aventura romântica é o conflito apresentado pelas palavras entre a busca pela experiência e a vivência do acaso, o ímpeto de sair ao campo da vida e transformar sua história e seu entendimento do mundo. O destino trágico é a vivência de uma história prefigurada, escrita antes mesmo de a personagem tomar ciência dela, em que o destino impera sobre a vontade. Assim, na aventura romântica, o tempo é o tempo que se abre aos acasos das ações humanas. E no destino trágico, o tempo trava seus ponteiros, deixando de existir, acontecendo à parte da história; ou confunde-se com o tempo mítico (da tradição milenar da costa pobre do Mediterrâneo, unindo em si mesmo o elegante com o efêmero, a fé com a tradição o religioso perverso com o pagão proibido), que é aquele em que o destino retorna, num tempo cíclico.
A obra mistura o hoje, o ontem e o sempre. Mistura repulsa e paixão. Mistura o perene à descoberta. Lavoura Arcaica se desvencilha do pré-estabelecido como forma de se fazer pertencer. Sai da casa da tradição em busca do seu próprio caminho. É filha pródiga que escapa da vigilância do seu senhor, mas que logo volta ao lar, convicta de que nada poderá encontrar fora dos limites da história. O circulo vicioso das tradições é mais forte que a vontade de liberdade e de auto-superação.
Concluindo esta primeira parte é bom lembrar que a obra é sem dúvida um romance apaixonante tanto para os leitores leigos como para os especialistas em literatura. Oferece material de deleite tanto para um quanto para outro. Um texto que coloca o leitor diante da poesia e da intensidade escondida nos fatos mais corriqueiros da vida. Uma obra de todos os lugares que acaba por se fixar naquele que cada um particularmente busca. Que fala de tradição enquanto remete a um tempo imensurável e individual. A história humana pode ser chamada de uma “Lavoura cansada” de tanto tradicionalismo sem fundamento histórico, onde, as virtudes e os valores terminam se afogando de tanta monotonia.
Parte 2
"Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul, violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, o quarto catedral, onde nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiros os objetos do corpo"
A tragédia de André e de sua família é um exemplo claro da morte da ordem. E o que seria esta ordem? Essa é uma pergunta que obcecava Aristóteles e ainda nos persegue até hoje. Se levarmos em conta, num sentido geral, que a ordem é o caminho natural do ser humano, em que a busca da unidade e da harmonia pode ser alcançada numa vida disciplinada e de inteira dedicação ao conhecimento, então a desordem e dissipação podem parecer uma exceção. É justamente o contrário, e a mente de André, criada na linguagem de Raduan Nassar, mostra como uma ordem excessivamente rigorosa é tão perigosa quanto à uma suposta libertação das sensações. A falta do justo meio, a do equilíbrio sempre traz conseqüência lamentável em todos os momentos da vida.
O grande antagonista do livro, segundo a visão de André (já que o livro é articulado através de suas memórias e digressões), não é somente o seu pai Ióhana, mas especialmente a família, uma família que, ironicamente, nunca aparece com seu sobrenome( uma família anônima que é tão semelhante a muitas outras). Os parentes nunca existem por inteiro: somos apresentados à mãe e aos irmãos como se fossem retalhos de uma grande maldição. Pedro, o irmão mais velho, busca André numa pensão para trazê-lo de volta para a fazenda, e temos apenas relances de sua angústia ao saber o verdadeiro motivo da fuga de André. Já a mãe é uma compadecida solitária que, ao que parece, ficou devastada com a fuga do filho, mas este não hesita em insinuar que foi seu carinho que o tornou um "enjeitado". Do restante dos irmãos, temos apenas as presenças de Lula, o irmão caçula, e de, claro, Ana, a irmã que será o pivô de toda a desgraça e tragédia que revelará um final pouco ortodoxo.
Do pai, sabemos apenas trechos de seus sermões e parábolas, proferidos durante as refeições enquanto a família está reunida. Seu tema favorito: como colher o tempo. Para ele, o tempo deve ser cultivado com calma, paciência, pois somente assim se terá a recompensa que merece. Ióhana é um cristão ortodoxo, libanês, que acredita que o trabalho despista o demônio e mantém os alicerces da família. Mal sabe que a ruína de sua ordem é uma semente de seu sangue - o pobre André que, "perturbado com a claridade excessiva da luz e da luz através das folhas das árvores", decide encontrar a sua redenção através da sua impaciência, encontrando na prisão da carne a liberdade de sentimentos reprimidos que culminarão em atos de bestialismo e incesto, uma paixão que ultrapassa todo tipo de autoridade e regra.
André é um faminto, como a parábola central contada pelo pai. Sua fome é insuportável, pois ela provém do espírito, e ele não suporta a dor da solidão e do exílio dentro da própria família. Seu isolamento - pressentido numa festa em que temos a primeira aparição de Ana numa dança de roda que terá sua simetria invertida no final - o perturba e o faz querer ir contra as regras de seu pai sobre a colheita do tempo. Inicia-se uma iniciação às avessas, em que a grande obsessão é agarrar sua irmã Ana a qualquer custo. Ana - "eu" em árabe - é o símbolo da inocência que será transformada ao se unir com a perversão, e Nassar faz questão de aproximá-la ao Espírito Santo na fantástica parte em que André prepara uma armadilha para prender o que deveria ser uma pomba. Contudo, a linguagem de Raduan Nassar não distingue as coisas, colocando tudo num mesmo redemoinho, e assim descobrimos que pomba, Ana e inocência são uma coisa só, e que a tal armadilha é a consumação do ato incestuoso.
Todo mundo sabe que o incesto simplesmente destrói qualquer base da civilização. O sexo entre parentes do mesmo sangue é uma regressão à lógica da ordem da unidade e da razão porque não é um movimento expansivo, próprio da procriação da raça humana, e sim provoca a entropia do círculo familiar, chegando à completa esterilidade. Mas para André, já literalmente "possuído", seu ato com Ana serve para justamente unir mais ainda a família, além de dar o seu lugar na mesa e de ter a sua redenção. É a típica inversão luciferina: a procura por alguma luz se dá por uma permissividade que inverte todo o fluxo do tempo. Se o desejo de André era destruir não só a sua família, mas também os princípios de seu pai, ele foi muito bem sucedido.
Uma leitura cuidadosa de "Lavoura Arcaica" mostrará que Raduan Nassar joga o tempo todo com uma ironia obscura e com brechas na narração que nunca levam o leitor ao um conhecimento da realidade como uma unidade ou como um todo. Apesar de todo o seu cuidado com a casca e a gema das palavras, elas servem mais para desunir do que propriamente atar os pedaços quebrados deste mundo. Não há nada de "elevado" nessa literatura, apesar de todo o seu sucesso estilístico e, mesmo com seus requintes de linguagem, "Lavoura" é uma obra que traz o leitor para as arestas do Inferno e que, se depender dela, o deixa lá mesmo. Sua catarse é uma catarse negativa, no sentido em que não há libertação, somente aprisionamento. É a morte da ordem, o fim da inocência e a vitória da paixão por sobre a vontade e a razão.
Daniel Baez Brizueña
Academico de Letras da FAFIUV
O grande antagonista do livro, segundo a visão de André (já que o livro é articulado através de suas memórias e digressões), não é somente o seu pai Ióhana, mas especialmente a família, uma família que, ironicamente, nunca aparece com seu sobrenome( uma família anônima que é tão semelhante a muitas outras). Os parentes nunca existem por inteiro: somos apresentados à mãe e aos irmãos como se fossem retalhos de uma grande maldição. Pedro, o irmão mais velho, busca André numa pensão para trazê-lo de volta para a fazenda, e temos apenas relances de sua angústia ao saber o verdadeiro motivo da fuga de André. Já a mãe é uma compadecida solitária que, ao que parece, ficou devastada com a fuga do filho, mas este não hesita em insinuar que foi seu carinho que o tornou um "enjeitado". Do restante dos irmãos, temos apenas as presenças de Lula, o irmão caçula, e de, claro, Ana, a irmã que será o pivô de toda a desgraça e tragédia que revelará um final pouco ortodoxo.
Do pai, sabemos apenas trechos de seus sermões e parábolas, proferidos durante as refeições enquanto a família está reunida. Seu tema favorito: como colher o tempo. Para ele, o tempo deve ser cultivado com calma, paciência, pois somente assim se terá a recompensa que merece. Ióhana é um cristão ortodoxo, libanês, que acredita que o trabalho despista o demônio e mantém os alicerces da família. Mal sabe que a ruína de sua ordem é uma semente de seu sangue - o pobre André que, "perturbado com a claridade excessiva da luz e da luz através das folhas das árvores", decide encontrar a sua redenção através da sua impaciência, encontrando na prisão da carne a liberdade de sentimentos reprimidos que culminarão em atos de bestialismo e incesto, uma paixão que ultrapassa todo tipo de autoridade e regra.
André é um faminto, como a parábola central contada pelo pai. Sua fome é insuportável, pois ela provém do espírito, e ele não suporta a dor da solidão e do exílio dentro da própria família. Seu isolamento - pressentido numa festa em que temos a primeira aparição de Ana numa dança de roda que terá sua simetria invertida no final - o perturba e o faz querer ir contra as regras de seu pai sobre a colheita do tempo. Inicia-se uma iniciação às avessas, em que a grande obsessão é agarrar sua irmã Ana a qualquer custo. Ana - "eu" em árabe - é o símbolo da inocência que será transformada ao se unir com a perversão, e Nassar faz questão de aproximá-la ao Espírito Santo na fantástica parte em que André prepara uma armadilha para prender o que deveria ser uma pomba. Contudo, a linguagem de Raduan Nassar não distingue as coisas, colocando tudo num mesmo redemoinho, e assim descobrimos que pomba, Ana e inocência são uma coisa só, e que a tal armadilha é a consumação do ato incestuoso.
Todo mundo sabe que o incesto simplesmente destrói qualquer base da civilização. O sexo entre parentes do mesmo sangue é uma regressão à lógica da ordem da unidade e da razão porque não é um movimento expansivo, próprio da procriação da raça humana, e sim provoca a entropia do círculo familiar, chegando à completa esterilidade. Mas para André, já literalmente "possuído", seu ato com Ana serve para justamente unir mais ainda a família, além de dar o seu lugar na mesa e de ter a sua redenção. É a típica inversão luciferina: a procura por alguma luz se dá por uma permissividade que inverte todo o fluxo do tempo. Se o desejo de André era destruir não só a sua família, mas também os princípios de seu pai, ele foi muito bem sucedido.
Uma leitura cuidadosa de "Lavoura Arcaica" mostrará que Raduan Nassar joga o tempo todo com uma ironia obscura e com brechas na narração que nunca levam o leitor ao um conhecimento da realidade como uma unidade ou como um todo. Apesar de todo o seu cuidado com a casca e a gema das palavras, elas servem mais para desunir do que propriamente atar os pedaços quebrados deste mundo. Não há nada de "elevado" nessa literatura, apesar de todo o seu sucesso estilístico e, mesmo com seus requintes de linguagem, "Lavoura" é uma obra que traz o leitor para as arestas do Inferno e que, se depender dela, o deixa lá mesmo. Sua catarse é uma catarse negativa, no sentido em que não há libertação, somente aprisionamento. É a morte da ordem, o fim da inocência e a vitória da paixão por sobre a vontade e a razão.
Daniel Baez Brizueña
Academico de Letras da FAFIUV
(Conclui na próxima edição)
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