sábado, 4 de julho de 2009

O autor como gesto, ou plantando flores sobre as cinzas - urtiga! nº5

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Muito já se falou sobre a indiferença a respeito do autor como mote ou princípio fundamental da ética da escritura contemporânea: «A marca do autor está unicamente na singularidade de sua ausência», disseram os teóricos que se posicionaram a favor de uma pretensa “morte do autor”. Michel Foucault, Maurice Blanchot, entre outros que o digam. No entanto, uma contradição se anuncia a cada vez que o assunto reaparece. O filósofo italiano Giorgio Agamben traz à tona a problemática, pondo em jogo o outro lado da mesma questão. Ele nos diz que o mesmo gesto que nega qualquer relevância à identidade do autor é aquele que justamente afirma a sua irredutível necessidade. Poderíamos estender a discussão aprofundando o olhar sobre o «autor indivíduo» e sobre a «função-autor», duas figuras diferentes que operam no universo de uma mesma discursividade. Todavia, optamos por embaralhar as cartas, os papéis do autor, talvez num ato de gentileza do pensamento, ou mesmo de profanação, lançando-nos a um detalhe que na maior parte das vezes é desconsiderado: O autor, mais do que um indivíduo ou uma função, poderia ser tomado como um gesto. Em suas elucubrações, Agamben vaticina: «Se chamarmos de gesto o que continua inexpresso em cada ato de expressão, poderíamos afirmar então que, exatamente como o infame, o autor está presente no texto apenas como um gesto, que possibilita a expressão na medida em que nela instala um vazio central». O mesmo vazio que Osman Lins representou na personagem de seu conto «Os gestos».

CENA 1 – Depois de um incêndio em um circo instalado no Rio de Janeiro, na década de 60, um homem toma a cena feito um profeta do dilúvio. Escreve no ar palavras de consolo aos familiares das vítimas e toma para si o papel de Gentileza. Dirige-se até o local do incêndio e planta flores sobre as cinzas do circo. Seu nome: José Datrino. Ainda na década de 60, o jornalista e cineasta Arnaldo Jabor, em seu curta-metragem «O circo», coletou o depoimento de Datrino.
CENA 2 - Com o tempo, usando uma túnica branca e longas barbas, o profeta passa a fazer inscrições poéticas em placas e em viadutos cariocas. Palavras de Gentileza. Feito um Arthur Bispo do Rosário, ou mesmo um dedicado discípulo do mundo espiritual, Gentileza transforma-se numa espécie de mediador entre o céu e a terra - o que todo poeta, em certa medida, é. No entanto, nenhum livro. Sua obra: os gestos. Os mesmos gestos que Blanchot detectou em Samuel Beckett, ao afirmar que talvez não estejamos mais em presença de um livro, mas de alguma coisa que é bem mais do que um livro: uma «aproximação pura do movimento de que vêm todos os livros, do ponto originário em que, sem dúvida, a obra se perde, que arruína permanentemente a obra, que instaura nela a ociosidade sem fim, mas com a qual é preciso manter uma relação cada vez mais essencial». O poeta de que falo adotou as palavras “agradecido” e o lema “gentileza gera gentileza” como uma forma de semear poesia pela cidade. Distribuiu flores, palavras, poemas, consolo. Toda cidade tem um poeta que a cidade nem sabe que tem. Pode ser a cigana, o palhaço, o louco, o bêbado, o mendigo.
CENA 3 – Depois de sua morte, em 1996, as poesias que pintou pela cidade foram sendo gradativamente destruídas por pichadores. As autoridades mandaram pintar os muros, instalando na cidade um vazio central. Apagaram as pichações, «apagaram tudo, a palavra no muro ficou coberta de tinta» – diria-nos Marisa Monte na música que dedicou ao poeta Gentileza. Ficaram os gestos. Em 1999, os painéis começaram a ser restaurados.
As cenas nos fazem refletir sobre algumas questões. «Apagar tudo» pode não significar muita coisa. Simplesmente porque nem tudo sempre se apaga. Que significa a morte de um autor quanto este é apenas um gesto de gentileza? Marcas, restos, rastros, signos inexpressos em cada ato poético...Pintaram tudo de cinza, mas lembra-te que sobre as cinzas, Gentileza plantou flores. E se a poesia está condenada a desaparecer sob a égide da tinta e da morte, o gesto está fadado a reaparecer sempre, tal fênix se erguendo das cinzas. E se o autor está condenado a morrer, está também fadado a renascer e sobreviver como gesto. Como um Gesto e como Gentileza.

Caio Ricardo Bona Moreira
Prof. de Literatura da FAFIUV

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