Certa vez eu disse para uma tia, “adulto não sabe brincar, porque brincar é muito difícil”, e foi só isso. Eu ainda me divertia com aquelas coisas da infância, onde a regra única é a invenção. Inventar, aliás, é um privilégio da infância que só os adultos com desvario conseguem. É uma perversão, uma falta de respeito, um desligamento radical para com as regras e as formas. É igual pintar o sol de azul e dar voz a bichos de pelúcia. Ou fazer a palavra ficar em dúvida do que ela realmente é, ou deveria ser. Eu não sei fazer poesia porque deixei minha ousadia na minha criança. A inspiração está sempre no ar, basta aceitá-la de bom grado e admitir suas exigências. Mas a coragem da criança destemida eu perdi jogando bola. Deixei cair – no meio do jogo não dá pra pensar em mais nada – e o tempo levou. Acho que ficou um pouco na bola, um pedaço na terra, e outro escorregou com o suor. Um dia, quando o sol estava apressado e fez todo mundo correr com as tarefas, eu fiquei parado. Foi aí que encontrei minha infância poética. E sorri. Não sabia se era pra chorar ou rir. Se era pra sentir saudade do tempo ou se era pra agarrar no braço do relógio e fazer o tempo parar, um pouco. O vento desviou no meu corpo e bateu um frio. Engraçado que o sol azul não cabia atrás do morro, mas a luz que vinha era tão fraquinha que não fazia mais calor. Ali eu fui poeta, porque nenhuma palavra me servia. No dia seguinte, peguei um caderno e comecei a anotar todas as palavras que eu lembrava pra fazer uma poesia. Todas as palavras que eu não tinha ontem eu pus no papel, mas ali não tinha poesia, porque o sol era só sol, e não podia ser azul. Foi assim que eu aprendi a não fazer poesia e percebi que a gente não faz poesia, a gente sente. Que nem uma moça que eu conheci, que rezava com a mão no livro, sentindo a força das palavras. Ela não sabia ler nem escrever, mas poesia ela sabia. Aí eu entendi que eu não consegui mais ser poeta como minha criança, porque eu tinha conhecido um monte de palavras. Quanto mais palavra eu conhecia, menos poesia eu fazia. Até que um dia eu juntei umas 300 palavras. Coloquei todas no mesmo papel, todas feitas por caneta, pra não fugir. Amassei o papel com as palavras na mão e fui jogar bola. O sol azul estava lá, grande demais pro morro que tava na frente dele, “sol não sabe brincar de pique - esconde”. Começou o jogo. Eu corria atrás da bola e esqueci o papel. Esqueci as palavras. O sol estava azul e o menino voltou a ser poeta.
Samon Noyama
Prof. de Filosofia da FAFIUV
Nenhum comentário:
Postar um comentário