terça-feira, 14 de abril de 2009

Manoel Ricardo de Lima: Expandindo o poema para a linha contínua - urtiga! nº2

O dicionário nos diz que um acidente é um acontecimento casual, fortuito, imprevisto; um acontecimento infeliz, e de que resulta ferimento, dano, estrago, prejuízo, ruína, desastre; o que se acresce ao principal, o acessório. Um acidente seria o pormenor, o detalhe, a particularidade, o que resulta de contingência, do acaso, dependente das circunstâncias e não da natureza de um ser. Roland Barthes, por exemplo, se dedicou à escrita de incidentes, aquilo que, tal como um acidente, cai sobre alguma coisa. Nesse caso, a coleta de coisas vistas ou ouvidas no Marrocos, em 1968 e 1969. Alguns anos depois, chegou a dizer que a futilidade do incidente, privada de todo comentário, se põe a nu, e «assumir a futilidade é quase heróico». Talvez essas definições nos ajudem a ler Quando todos os acidentes acontecem (7Letras), o mais recente livro do poeta Manoel Ricardo de Lima. Talvez não. Talvez apenas nos levem a outros acidentes - o dicionário bem poderia ser um deles; o desastre cuida de tudo, nos diria Blanchot. Se esse desastre nos aparece com o semblante de um fantasma, não faz mal, é o fantasma do tempo e da alegria, defende o poeta. O crítico argentino Raúl Antelo, ao apresentar o livro do Manoel, observa que a poesia é destituição: “Ela existe tão-somente para aguardar e anunciar o acontecimento imprevisto. Ela é precipitação mas não tem pressa nenhuma. Sua prática não provém de um saber ou, quando menos, aquilo que a poesia sabe é justamente o saber de uma ausência. Diante dessa lacuna, desse hiato, pode-se avançar ou recuar, mas seja qual for o sentido que se empreenda, ele sempre deriva de uma decisão tomada, justamente, no ponto extremamente dramático em que mais de uma alternativa era possível”. O saber de uma ausência estaria ligado, aqui, ao fato de que na linguagem da poesia a destituição faz o sujeito se confrontar com o lugar vazio da representação. Que resta depois que esse acidente acontece? Uma raspa de poeira com preguiça, duas flores amarelas que saltam do desenho, a lata de coca-cola e sua fratura, um amargo, uma dobra, uma rasura, pontas de cigarro e resto de comida, um lanceado sob a ponte, um fusca tombado num 15 de novembro. Mas só os acidentes não bastam para a poesia; e Manoel tem plena consciência disso. É preciso que o poeta rompa a centelha, burile a palavra, explore a sintaxe, expandindo o poema para a linha contínua, até que uma luz viva resulte do choque de dois corpos duros, de todo e qualquer acidente, que também é a própria linguagem. Por isso, o poeta não tem pressa: «Minha produção é pouca porque preciso de muita alegria pra isso e porque escrever me mantém vivo e alegre. (...) E isto tem a ver com trabalho, com demora, com espera, com muita alegria».

Caio Ricardo Bona Moreira
Prof. de Literatura da FAFIUV



Poemas do livro Quando todos os acidentes acontecem


as fotografias
pra Júlia

entre duas janelas
de vidro e uma cortina azul,
quase mortas, ao léu, três
fotografias que fez da rua em
preto & branco. sem nenhuma
imagem do presente, sempre de
passagem, a areia do lugar que
você diz que é seu
olá, tô indo, é o aviso do
aceno, sem retorno ou remorso,
o torço inteiro de abandono. um
branco e vermelho, branca, sem
voz, resmunga: eu ainda moro
aqui, eu ainda sempre moro
aqui
e ouvimos alto, isentas,
mole-moles, las fotos (y la isla),
de novo a sua voz que vem
da rua, em preto & branco:
ricordo una vecchia città, rossa
di mura e turrita, arsa su la
pianura sterminata nell'agosto
torrido, con il lontano
refrigerio di colline verdi e
molli sullo sfondo
o fio vermelho do colar
sobre o peito, o anel no polegar
da mão direita, a sandália
nova: e não é que ela insiste
mesmo no vermelho. e disse de
uma dor no pé, no pé esquerdo, pro
lado pro mato sem beira e sem
mundo, meu amor

embrulho número dois

a lata de coca-cola e sua
fratura, um amargo, uma
dobra, uma rasura, uma
ferrugenzinha de merda:
penso e murcho o canudo
azul cai, o canudo vermelho
e uns rasgos feito com a boca
e com as unhas imundas –
tudo dentro do ônibus fede e
permanece como se
não fosse parar
escreve que é uma nuança,
outro tom de luz ou um grande
corte no dedo anular da mão
direita. que este sangue podre
rasga o nordeste inteiro lá
fora e que este amor teima, anda
e desanda nesta mesma
paisagem neste mesmo
deserto nesta farsa


um ponto preto


quase: mas eu vi, e costumo
repetir o que vi, e todas as vezes
que vi. ainda sigo as palavras
mexendo as mãos. os gestos nem
sempre são rápidos, fi rmes (mas
sigo com os olhos pretos e úmidos
e provo que estive aqui: é uma
passagem estreita, poucos
tijolos. e faz muito frio)
se nada existe, não interessa,
é fácil montar um plano. uma
disputa. é sempre possível perder
o jeito com o território. perder as
marcas da memória. perder
as imagens da janela
a avariada imagem da
janela. as inúmeras imagens
da janela. todos os tipos de
imagens da janela. a janela
opaca. a janela aberta. o barulho
da janela fechada. o barulho do
ferrolho. da tranca. um renque. e
o vento que é sempre demais
nesse lugar



Em março deste ano Manoel Ricardo de Lima lançou o livro de poemas Quando todos os acidentes acontecem, pela editora 7Letras, e falou ao jornal urtiga! sobre poesia, artes plásticas e outros parangolés.

Entrevista


1 – Manoel, depois que você lançou “Falas Inacabadas – Objetos e um Poema”, em parceria com Elida Tessler, parece que seu trabalho vem interagindo cada vez mais com as artes plásticas. Você concorda com essa afirmação? De que maneira essa relação tem sido produtiva para você?
Manoel- Não sei se assim tão diretamente, Caio, como eu queria. Mas tenho uma proximidade com algumas questões que acho mais pertinentes quando as vejo em trabalhos de alguns artistas visuais que gosto. Muito mais do que em alguns poetas. E aí, esta conversa aberta me interessa para o meu trabalho com o poema. Há uma tensão de pensamento entre a fala e o trabalho nos artistas visuais que acho bem mais articulada e mais livre do que nos poetas. Mas é uma linha de interesse, uma maneira de olhar e de fazer, apenas isso.

2 – Poesia, que fantasma é esse?
Manoel- Para mim eu poderia dizer que é o fantasma do tempo e da alegria. Minha produção é pouca porque preciso de muita alegria pra isso e porque escrever me mantém vivo e alegre. Acabei de lançar meu último livro de poemas - 'Quando todos os acidentes acontecem' (7Letras, RJ)- porque durante o ano passado pude me dedicar a ele, me debruçar sobre poemas que já vinha trabalhando há oito anos. E isto tem a ver com trabalho, com demora, com espera, com muita alegria.

3 – Como você, que além de poeta é professor, articula as reflexões oriundas do universo acadêmico no âmbito da criação literária?

Manoel- Há complicadores aí muito maiores do que posso perceber e dizer deles. A academia é um espaço mantido, hoje (como muitos espaços e esferas públicas no Brasil) como se fosse uma truculenta instituição privada, cheia de donos, de articulações terríveis para manutenções de poder, com concursos estranhos, formas de favorecimento e outros impasses medonhos . Mas é também ali que se pode ainda, com tanta adversidade, esperar alguma potência numa ou noutra gentileza de pensamento. E amém, mesmo que muito raramente, há, ainda há. E é bem aí, nesta pequena brecha, que mora a alegria de um contato possível entre o professor honesto que tento ser comigo e com meus alunos, como uma política de ação livre e pensamento minimamente severo, e meu trabalho quando escrevo. Porque escrevo o tempo inteiro, sem papel, caneta ou computador. Escrevo o tempo inteiro, pra nada, mas é assim que é.

4 – O poeta parece ter abandonado os grandes gestos modernistas, no entanto, a poesia continua. Que pode o poeta na comunidade que vem?
Manoel- Ainda acredito, como o pensador Walter Benjamin, que é possível ter como tarefa política a do caráter destrutivo: arejar, romper, abrir caminhos entre as ruínas. Penso que o lugar do poeta e do poema ainda é e pode ser esse. Isto também pode ser a nossa tarefa da alegria.

5 – A relação do poeta com seu paideuma é sempre complexa, não se resolvendo como uma mera questão de influência. Como você vê, no seu trabalho, a presença de Joaquim Cardozo e Paulo Leminski, poetas que você estudou no Mestrado e no Doutorado?
Manoel- São dois tempos diferentes, como aqueles motores antigos que tinham dois tempos. Leminski foi mais ou menos o cara que parece ter me dito algo assim: 'poesia pode ser outra coisa'. Eu tinha aí uns 16, 17 anos. Poesia podia ser roquenrou. E é, e pode ser. O Joaquim é porque é sempre melhor pensar por onde as vias estão ainda abertas e muito contaminadas das mesmas coisas. Acho que a poesia e a crítica que Joaquim Cardozo produziu no Brasil no século XX atravessada pela ciência, pela etnografia, a arquitetura e a engenharia, o poema, o teatro, as artes visuais, a sua delicadeza, seu gesto generoso e quieto é das coisas mais radicais que temos. Por aí, imagino, é mais interessante ler e reler o moderno, ler e reler o presente: por onde as pegadas ainda são nenhumas.

6 - A concisão parece ser um dos traços fortes de sua poesia. A despeito daqueles que afirmam não haver mais espaço para esse procedimento, o "múltiplo no mínimo" ainda parece dar bons resultados, como nos poemas do Chico Alvim.
Manoel- Meus poemas estão muito diferentes desta primeira linha concisa, Caio. E acho que isto se deve ao meu trabalho de expansão da linha, que pode vir de João Cabral de Melo Neto, mas pode vir também muito mais da linha da escultura de Eduardo Frota ou dos trabalhos desencarnados de Giuseppe Penone. Então, o procedimento no meu trabalho, a meu ver, agora está expandido para a linha contínua, como já havia experimentado na minha novela 'As Mãos' (2003). E isto me interessa muito agora: expandir a linha até a linha não ter limite.

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