Se – de acordo com Borges em seu texto Kafka e seus precursores – o escritor escolhe seus precursores independentemente do tempo cronológico, não seria injusto incluir nessa lista o escritor, dramaturgo e poeta Samuel Beckett, ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 1969. Voltando, porém, à tão comum linha do tempo, tirânica e irônica, segundo Modesto Carone, Beckett seria o escritor que mais seguiu a linha kafkiana de pensamento. Não apenas seguiu como evoluiu. Levantando a questão temporal da vertiginosa obra de Kafka (principalmente em O Processo e O Castelo), o labirinto criado por este exprime uma espera incerta e inconclusiva. Enquanto durante todo o processo Josef K. experimenta a longa e insólita espera pela indefinição da sua causa, Vladmir e Estragon – os vadios da peça Esperando Godot (talvez a mais conhecida de Beckett) somente esperam. Esperam um desconhecido, de quem não se sabe nada mais além do nome: Godot. Tanto em Kafka quanto em Beckett a vida se resume a uma seqüência de repetições infinitas. Quem é Godot, ou o que ele fará quando chegar, ninguém sabe. O próprio autor, quando perguntado a que (ou a quem) se referia respondeu: “Se eu soubesse, teria dito na peça”. Inúmeras teorias, sobre elas a mais forte, aquela que afirma que Godot seria uma alusão a God (Deus), ou a Godeau – personagem de uma comédia de Balzac do qual todos falam, mas que nunca é visto – quando, na verdade, o que está em discussão não é Godot, e sim o ato de espera essencial à condição humana. É interessante lembrar que a maior parte obra de Beckett é escrita sob a tensão da Segunda Guerra Mundial, onde ele próprio atuou como militante da resistência francesa. Em Esperando Godot e Fim de Partida, é possível notar nos dois atos as mesmas situações. No entanto, a cada vez que a situação se repete, é relativamente agravada, de maneira que é impossível ao leitor (ou espectador) saber quantas vezes e há quanto tempo a cena se repete, e há quanto tempo os personagens estariam sofrendo o gradativo desgaste. Franz Kafka apresenta um mundo caminhando para um fim caótico, em que seria necessário a “desindividualização”; Beckett traz as conseqüências da individualização através de uma crítica cítrica à falência do individualismo e à desconstrução do sujeito cartesiano. Seus cenários são reduzidos, seus personagens possuem fragmentação física e as motivações das situações são obscuras. O vazio dos diálogos mostra que os personagens precisam falar, mesmo que não tenham sobre o que falar e acabam por protagonizar situações ligeiramente cômicas, mas que estão fadadas à angustia. Foi através de Esslim que o teatro de Samuel Beckett, de Eugene Ionesco e Jean Genet levou a alcunha de “absurdo”, embora nunca pronunciado por eles. Segundo Esslim “O Teatro do Absurdo desistiu de falar sobre o absurdo da condição humana; ele apenas apresenta tal como existe.”
Beckett apresenta um mundo pós- apocalipse e cheio de incertezas sobre a condição humana, e para isso esvazia toda a ação através da representação infernal do tempo, da espera. Infinitamente.
Desta maneira, Beckett profetiza Kafka.
Larissa Ceres Lagos
Acadêmica de Letras da FAFIUV
Fragmento de Esperando Godot
VLADIMIR: Não percamos tempo com palavras vazias (Pausa. Com veemência) Façamos alguma coisa, enquanto há chance! Não é todo o dia que precisam de nós. Ainda que, a bem da verdade, não seja exatamente de nós. Outros dariam conta do recado, tão bem quanto, senão melhor. O apelo que ouvimos se dirige antes a toda humanidade. Mas neste lugar, a humanidade somos nós, queiramos ou não. Aproveitemos enquanto é tempo. Representar dignamente, uma única vez que seja, a espécie a que estamos desgraçadamente atados pelo destino cruel. O que nos diz? ( Estragon não fala nada) Claro que, avaliando os prós e contras, de cabeça fria, não chegamos a desmerecer a espécie. Veja o tigre que se precipita em socorro de seus congêneres, sem a menor hesitação. Ou foge, salva sua pele, embrenhando-se no meio da mata. Mas não é esse o xis da questão. O que estamos fazendo aqui, essa sim é a questão. Foi-nos dada uma oportunidade de descobrir. Sim, dentro desta imensa confusão, apenas uma coisa está clara: estamos esperando que Godot venha.
Fragmento do texto Beckett, o apocalipse e depois, de Paulo Leminski
Talvez nenhum escritor do século XX apresente o ser humano nas mais extremas fronteiras da abjeção e precariedade como o pai de Godot. Os personagens de seus romances e peças são aleijados, paralíticos, moribundos, a humanidade no limite máximo da carência e da penúria, mais digna de nojo e asco do que de piedade ou pena. Não admira que tenha freqüentado, em Paris, o círculo de Sartre, na época do primeiro existencialismo, antes da conversão de Sartre ao marxismo. De marxismo e utopias, aliás, não há traço, na obra de Beckett. Seu desespero não é daqueles que se curam com soluções sociais ou coletivas, no sentido de uma sociedade mais justa e mais construtiva.
É uma desesperança integral, essencial, inspirada na decadência física do homem, na falta de sentido de todas as coisas e na certeza da morte. Beckett é um escritor de vertigens.
Beckett apresenta um mundo pós- apocalipse e cheio de incertezas sobre a condição humana, e para isso esvazia toda a ação através da representação infernal do tempo, da espera. Infinitamente.
Desta maneira, Beckett profetiza Kafka.
Larissa Ceres Lagos
Acadêmica de Letras da FAFIUV
Fragmento de Esperando Godot
VLADIMIR: Não percamos tempo com palavras vazias (Pausa. Com veemência) Façamos alguma coisa, enquanto há chance! Não é todo o dia que precisam de nós. Ainda que, a bem da verdade, não seja exatamente de nós. Outros dariam conta do recado, tão bem quanto, senão melhor. O apelo que ouvimos se dirige antes a toda humanidade. Mas neste lugar, a humanidade somos nós, queiramos ou não. Aproveitemos enquanto é tempo. Representar dignamente, uma única vez que seja, a espécie a que estamos desgraçadamente atados pelo destino cruel. O que nos diz? ( Estragon não fala nada) Claro que, avaliando os prós e contras, de cabeça fria, não chegamos a desmerecer a espécie. Veja o tigre que se precipita em socorro de seus congêneres, sem a menor hesitação. Ou foge, salva sua pele, embrenhando-se no meio da mata. Mas não é esse o xis da questão. O que estamos fazendo aqui, essa sim é a questão. Foi-nos dada uma oportunidade de descobrir. Sim, dentro desta imensa confusão, apenas uma coisa está clara: estamos esperando que Godot venha.
Fragmento do texto Beckett, o apocalipse e depois, de Paulo Leminski
Talvez nenhum escritor do século XX apresente o ser humano nas mais extremas fronteiras da abjeção e precariedade como o pai de Godot. Os personagens de seus romances e peças são aleijados, paralíticos, moribundos, a humanidade no limite máximo da carência e da penúria, mais digna de nojo e asco do que de piedade ou pena. Não admira que tenha freqüentado, em Paris, o círculo de Sartre, na época do primeiro existencialismo, antes da conversão de Sartre ao marxismo. De marxismo e utopias, aliás, não há traço, na obra de Beckett. Seu desespero não é daqueles que se curam com soluções sociais ou coletivas, no sentido de uma sociedade mais justa e mais construtiva.
É uma desesperança integral, essencial, inspirada na decadência física do homem, na falta de sentido de todas as coisas e na certeza da morte. Beckett é um escritor de vertigens.
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