quarta-feira, 25 de março de 2009

CAIO FERNANDO ABREU, POR FORA DA CASCA, POR DENTRO DO OVO - urtiga! nº1

“O que pode ensinar-nos a obra de arte acerca das relações humanas em geral?” A interrogação de Maurice Blanchot nos convida a pensar a obra de Caio Fernando Abreu. Em 1975, o escritor gaúcho publicou O Ovo Apunhalado, uma reunião de contos considerados pela crítica como os mais surrealistas de sua produção. No mesmo ano, surgiram Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar; Catatau, de Paulo Leminski; Zero, de Inácio de Loyola Brandão e Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca.

Um dos textos que mais chama a atenção em O Ovo Apunhalado é aquele que deu origem ao título do livro. Poderíamos dizer que o conto é um emaranhado de sensações e mistério que, à maneira dos procedimentos alquímicos, pretende potencializar a obra ao transmutar um estado em outro: Um ovo que sai do quadro e vem de encontro ao narrador? Um narrador que vira ovo? Um ovo que é apunhalado? Um narrador que foi apunhalado? Responder a essas perguntas que permeiam seu entendimento não é fácil, ainda mais quando se trata de um texto de Caio Fernando Abreu. Vale lembrar que para os alquimistas o ovo filosófico é aquele tem em si o germe espiritual da vida, no qual deve acontecer a sabedoria. Dar novos sentidos a esse ovo é tarefa de alquimista.

A lista de artistas que se dedicaram a pensar o ovo é longa: Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Tarsila do Amaral, Salvador Dalí, Francisco Brenand, entre outros. Podemos ainda apontar Georges Bataille que, em A História do Olho, explora uma associação entre o olho, o ovo, e outras circunferências, como o ânus.

Clarice Lispector, em O Ovo e a Galinha, transforma o ovo num sintoma de poder e ao mesmo tempo de impotência: “Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo (...). O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe”. Aqui cabe um ponto coincidente, a obra de Salvador Dalí, chamada O nascimento do novo homem. A pintura exalta uma vida misteriosa e esperada, gestada no ovo, mas também a morte. A casca lascada do ovo, um limiar. Caio, como um bom leitor de Clarice, afirmou a ambivalência do ovo, e principalmente seu non-sense: “O carro pára e o motorista me olha: sua cara é um ovo macio, redondo, liso e branco, com um punhal fincado no centro. Sorrio para ele, bato-lhe devagar no ombro, querendo dizer que compreendo (...) Sobre o muro está sentado um ovo de pernas cruzadas”. Que sentido pode haver então em todos esses ovos?
Há neles o sentido do não-sentido. Nenhum significado determinado a priori, nenhum mistério para ser descoberto senão o próprio nada do ovo. É o desnudar-se do homem no fim da perseguição de um sentido. No homem é preciso muita coragem para assumir-se apenas homem, apenas humano, assim como o ovo apenas um ovo. Podemos perceber essa figura como a prefiguração do neutro, proposto por Barthes: “o neutro é o despegamento do sentido”. Não há um sentido majoritário escondido. Nesse sentido, o ovo guarda em si aquilo que Nietzsche chamou de vontade de potência, tendo a possibilidade de agrupar o uno ao múltiplo, e vice-versa, guardando o vir a ser.
Com isso, talvez se esclareça um pouco que as explicações nem sempre são necessárias. Girar em torno da literatura de Caio, buscando nela uma lógica fora da literatura, seria como a- punhalar um ovo já apunhalado. Não podemos tratar de sua arte da mesma maneira que tratamos de ciência. É preciso deixar o texto falar, dar a ver seu ovo, porque ele não representa, ele simplesmente diz, simplesmente é.














a capa do livro de C. F. Abreu, lançado em 1975. Ao lado, o Ovo Primordial, de Francisco Brennand; Urutu, de Tarsila do Amaral e O nascimento do novo homem, de Salvador Dalí.


Lia Karine Gregório,
Pós-graduanda em Língua Portuguesa e respectivas literaturas (FAFIUV)

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