Antonio Carlos de Brito foi um professor universitário. Cacaso, por sua vez, um dos principais fomentadores da poesia marginal, no Brasil dos 60 e 70. Os dois, a mesma pessoa. Dois em um. O jovem mineiro de cabelos longos e meio hippie, que além de poeta e professor foi compositor, «fez a cabeça» da garotada nas universidades e também fora dela. Depreende-se de seus poemas a concepção de uma poesia irônica e aparentemente despretensiosa, elementos característicos da dita «geração mimeógrafo». Mas até que ponto a sua poesia pode ser considerada fruto apenas de um «desbunde marginal», de uma mera anotação sem pretensões literárias? Não seria ela também fruto de um jogo, proposto por um hábil escritor oriundo da academia?
No ensaio inacabado «O Poeta dos Outros» (1988), Cacaso comenta o poema «Almoço», de Francisco Alvim. A cena enfocada pelo poema poderia ser considerada uma mera fotografia do cotidiano, no entanto, Cacaso vê no texto do poeta, meio marginal, meio diplomata, algo mais do que a mera transcrição de uma cena do real. Diz o poema:
No ensaio inacabado «O Poeta dos Outros» (1988), Cacaso comenta o poema «Almoço», de Francisco Alvim. A cena enfocada pelo poema poderia ser considerada uma mera fotografia do cotidiano, no entanto, Cacaso vê no texto do poeta, meio marginal, meio diplomata, algo mais do que a mera transcrição de uma cena do real. Diz o poema:
Sim senhor doutor, o que vai ser?
Um filé mignon, um filezinho, com salada de batatas
Não: salada de tomates
E o que vai beber o meu patrão?
uma caxambu
(CHICO ALVIM)
Para Cacaso, o segredo do poema parece estar na quantidade de experiência que acumula: «Existe toda uma história contida neste «sim senhor doutor» e neste «meu patrão». Algo como a confirmação de um hábito, sua sedimentação, numa síntese de relacionamento em que tudo é transparente: o garçom é o garçom, o freguês é o freguês. Ambos têm os seus comportamentos e as suas falas respectivamente adequados à posição social de cada um. Nota-se, assim, que a aparente singeleza do poema marginal esconde um trabalho «arquitetônico» consciente e singular. A pretensão do poema dá lugar a uma profunda reflexão, não apenas sobre a situação apresentada por Chico Alvim, mas principalmente sobre um recurso que modula os dizeres a partir de uma espécie de simulação de uma anotação, o que acontece em grande parte da produção de Chico Alvim, Cacaso, e outros poetas marginais. E é justamente essa simulação que torna problemática a abordagem desse fenômeno, já que aquilo que simula cria uma espécie de jogo, bem como não se entrega fácil a especulações corriqueiras. O enganar, aqui, é sinônimo de simulação. A aproximação entre poesia e realidade, em Cacaso, deve ser tomada como uma aproximação entre poesia e vida. No poema «Na corda camba», ele come-morava:
Poesia
eu não te escrevo
eu te
vivo
e viva nós!
(CACASO)
Mas isso não significa que qualquer fragmento do cotidiano possa ser considerado poesia. É preciso transformá-lo, como um ready-made, já que o real da poesia é sempre uma água que escorre da palma da mão. Barthes, em seu curso «A preparação do romance» desenvolve uma reflexão acerca da relação entre a escrita e o real que pode nos ajudar a entender e problematizar a questão da poesia marginal: "(...) a “literatura” se faz sempre com a “vida”. Meu problema é que não creio ter acesso à minha vida passada; ela está na bruma, isto é, na fraqueza de intensidade (sem a qual não há escritura)".
Essa simulação de que falei até agora poderia ser o calcanhar de Aquiles da poesia de Cacaso, justamente porque o poema seria visto como uma mera anotação de uma situação qualquer. Onde estaria a arte? Sua poesia seria entendida apenas como uma mera «brincadeira marginal». No entanto, lembremos que por trás dessa prática há apenas a produção de um efeito de real.
A leitura da poesia de Cacaso e de boa parte da dita poesia marginal, levando-se em consideração a opção pela apresentação de uma produção em fragmentos, exige, acredito, algo além do que a interpretação de fatos do poema como simples fotos do real, por meio da anotação, ou dos poemas como planos ideais de um suposto engajamento para com a realidade. Dizer apenas isso seria ainda muito pouco. É claro que esses poemas acabam funcionando como um microrganismo de uma macro-realidade, e também, curiosamente, como um macro-organismo de uma realidade que em si já se configura como fragmentada. Mas me parece fundamental, e até óbvio, perceber essa apresentação da realidade como a construção de uma outra. Que imagem é essa que ela evoca?
Lembremos da etimologia da palavra imagem, que pode ter o sentido de reproduzir fielmente algo, copiar, bem como simular, parodiar. Assim, poderíamos perceber que a presença daquilo que chamamos de “real” é difusa, mesmo em se tratando de uma escrita que tende a valorizar uma aproximação indelével com o cotidiano, como é o caso da poesia marginal. Logo, a crença de que o poema marginal funciona apenas como um registro do real dissimula um olhar perspicaz que não esquece que por trás da máscara do poeta, há máscaras e mais máscaras, e que por trás desse (des)pretensioso espelho, há espelhos e mais espelhos. Nesse sentido, o gesto aparentemente inocente de “rabiscar” a realidade no papel, comum na poesia dos anos 60 e 70, não deixaria de ser um gesto de violência, impossível tocar essa realidade sem seduzi-la e transformá-la.
Assim, em Cacaso, ao mesmo tempo, há uma tentativa de estreitar os laços entre a produção poética e o dia-a-dia, bem como instaurar uma prática que, sem esquecer dessa aproximação, lança um quesito fundamental para a conquista de uma produção poética séria, que pode, é claro, ser “malandra”, mas que sabe também que essa brejeirice, paradoxalmente, deve ser coisa séria, em se tratando de poesia.
Por mais que o poema seja rabiscado nos botecos da vida, entre um gole de cerveja e um trago no cigarro, Cacaso não abre mão do rigor. É o que pode ser observado no artigo “Tudo da minha terra” (1978), em que o escritor, ao comentar a poesia de Chacal, não esquece de “alfinetar” a vertente banal da poesia marginal: «Esta informalidade que hoje reina em setores importantes de nossa ideologia de resistência, em nossa multiforme contracultura, facilita a difusão e a aceitação da crença de que uma vez que fazer arte e viver já não se distinguem, então a possibilidade de criar já não supõe maiores capacitações, e todo mundo indistintamente é promovido a artista, o que é o mesmo que extinguir a espécie» .
Caio Ricardo Bona Moreira,
Prof. de Literatura da FAFIUV
Essa simulação de que falei até agora poderia ser o calcanhar de Aquiles da poesia de Cacaso, justamente porque o poema seria visto como uma mera anotação de uma situação qualquer. Onde estaria a arte? Sua poesia seria entendida apenas como uma mera «brincadeira marginal». No entanto, lembremos que por trás dessa prática há apenas a produção de um efeito de real.
A leitura da poesia de Cacaso e de boa parte da dita poesia marginal, levando-se em consideração a opção pela apresentação de uma produção em fragmentos, exige, acredito, algo além do que a interpretação de fatos do poema como simples fotos do real, por meio da anotação, ou dos poemas como planos ideais de um suposto engajamento para com a realidade. Dizer apenas isso seria ainda muito pouco. É claro que esses poemas acabam funcionando como um microrganismo de uma macro-realidade, e também, curiosamente, como um macro-organismo de uma realidade que em si já se configura como fragmentada. Mas me parece fundamental, e até óbvio, perceber essa apresentação da realidade como a construção de uma outra. Que imagem é essa que ela evoca?
Lembremos da etimologia da palavra imagem, que pode ter o sentido de reproduzir fielmente algo, copiar, bem como simular, parodiar. Assim, poderíamos perceber que a presença daquilo que chamamos de “real” é difusa, mesmo em se tratando de uma escrita que tende a valorizar uma aproximação indelével com o cotidiano, como é o caso da poesia marginal. Logo, a crença de que o poema marginal funciona apenas como um registro do real dissimula um olhar perspicaz que não esquece que por trás da máscara do poeta, há máscaras e mais máscaras, e que por trás desse (des)pretensioso espelho, há espelhos e mais espelhos. Nesse sentido, o gesto aparentemente inocente de “rabiscar” a realidade no papel, comum na poesia dos anos 60 e 70, não deixaria de ser um gesto de violência, impossível tocar essa realidade sem seduzi-la e transformá-la.
Assim, em Cacaso, ao mesmo tempo, há uma tentativa de estreitar os laços entre a produção poética e o dia-a-dia, bem como instaurar uma prática que, sem esquecer dessa aproximação, lança um quesito fundamental para a conquista de uma produção poética séria, que pode, é claro, ser “malandra”, mas que sabe também que essa brejeirice, paradoxalmente, deve ser coisa séria, em se tratando de poesia.
Por mais que o poema seja rabiscado nos botecos da vida, entre um gole de cerveja e um trago no cigarro, Cacaso não abre mão do rigor. É o que pode ser observado no artigo “Tudo da minha terra” (1978), em que o escritor, ao comentar a poesia de Chacal, não esquece de “alfinetar” a vertente banal da poesia marginal: «Esta informalidade que hoje reina em setores importantes de nossa ideologia de resistência, em nossa multiforme contracultura, facilita a difusão e a aceitação da crença de que uma vez que fazer arte e viver já não se distinguem, então a possibilidade de criar já não supõe maiores capacitações, e todo mundo indistintamente é promovido a artista, o que é o mesmo que extinguir a espécie» .
Caio Ricardo Bona Moreira,
Prof. de Literatura da FAFIUV
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