Até que ponto podemos afirmar que a vida pessoal do escritor é verdadeira em um relato? Será que o que lembramos aconteceu da maneira que lembramos, ou da maneira como gostaríamos que tivesse acontecido? Não há como medir a veracidade. Mário Quintana diz em um de seus poemas: “A memória tem uma bela caixa de lápis de cor”, exatamente pelo fato que, ao lembrarmos, interferimos nessa realidade, modificamos, moldamos. Waly Salomão costumava dizer que a memória é uma ilha de edição. Até mesmo quando se propõe a escrever sobre seu mundo real, o autor nem sempre pode estar sendo “verdadeiro”. Maurice Blanchot desenvolve uma reflexão sobre o diário íntimo que poderia nos ajudar a pensar essa questão. Para ele, o extraordinário faz parte do ordinário. O que tomamos como diário íntimo, numa obra literária, pode ser uma armadilha. Escrevemos para nos lembrar de nós, no entanto, a vida que migra para a obra é um reflexo ilusório: “O diário está ligado à estranha convicção de que podemos nos observar e que devemos nos conhecer”. Advém dessa convicção a idéia que podemos conhecer o autor através da sua obra. Em certa medida, essa alternativa parece ser um problema, ou mesmo uma armadilha. O filósofo italiano Giorgio Agamben, em Profanações, lembra que “não podemos trazer à linguagem nossos desejos porque os imaginamos”. E a imaginação é artifício. Se o corpo dos desejos é uma imagem, o que é inconfessável no desejo é a imagem que dele fizemos: “Comunicar a alguém os próprios desejos sem as imagens é brutal. Comunicar-lhes as próprias imagens sem os desejos é fastidioso (assim como narrar os sonhos ou as viagens). Mas fácil, em ambos os casos. Comunicar os desejos e as imagens desejadas é tarefa mais difícil. Por isso a postergamos. Até o momento em que começamos a compreender que ficará para sempre não cumprida. E que o desejo inconfessado somos nós mesmos, para sempre prisioneiros na cripta”. Há um interessante artigo de Annita Costa Malufe, sobre a poeta Ana Cristina Cesar, que defende que o texto literário é sempre, enfaticamente, construção. Ou seja: “Ele não é a representação de uma realidade outra – seja ela do exterior, do mundo, das coisas, ou mesmo do interior daquele que o escreveu - mas constitui em si uma realidade. Não há modelo e cópia, não há a representação de um ideal, mas a apresentação de um real inédito, um universo próprio e autônomo do texto”.Na literatura, Mallarmé foi um dos precursores dessa perspectiva, chamando a atenção para o corpo da linguagem e não para a figura do “gênio”, do escritor. É o que acabou interessando a um teórico como Foucault, ao enfocar a escrita liberada da função de expressar o mundo e a realidade, e voltar-se para a linguagem como um universo autônomo. Malufe ainda observa que com isso, “são abertas as portas para uma nova compreensão da literatura, aquela que a enxerga como algo que subverte a linguagem, que quer dar-lhe uma nova função”. Que nova compreensão da literatura seria essa? Uma literatura que leva em consideração que o ato da leitura consiste basicamente em “puxar o significante”, como nos disse Ana Cristina Cesar, ou seja, ir fazendo associações das mais diversas e inesperadas a cada vez: “Ler é meio puxar fios, e não decifrar”.Poderíamos considerar também o autor como uma espécie de personagem. Segundo Roland Barthes, no texto “A morte do autor”, “o autor é uma personagem moderna, produzida sem dúvida por nossa sociedade na medida em que, ao sair da Idade Média, com o empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, ela descobriu o prestígio do indivíduo ou, como se diz mais nobremente, da pessoa humana”.Sob esse ponto de vista, o autor ainda reina em manuais de história literária, como um ente, ao contrário de tendências que tentaram problematizá-lo, como Mallarmé, Valery, Blanchot, Foucault, o próprio Barthes, bem como a escrita automática surrealista. Poderíamos, então, observar que o autor moderno é diferente do autor tradicional: “o escriptor moderno nasce ao mesmo tempo que seu texto; não é, de forma alguma, dotado de um ser que precedesse ou que excedesse a sua escritura, não é em nada o sujeito de que o seu livro fosse o predicado”. Ainda seguindo os passos de Barthes, somos levados a crer que uma vez afastado o autor, a pretensão de “decifrar” um texto se torna totalmente inútil. Na escritura múltipla, aquela destituída da figura do autor, “tudo está para ser deslindado, mas nada para ser decifrado”. O que por si só já bastaria para desencadear uma nova concepção da literatura.Comentar a obra, nesse caso, só pode ser possível se partirmos do pressuposto de que a leitura é uma espécie muito especial de re-invenção da obra.
Lia Karine Gregório
Graduada em Letras pela FAFIUV
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